A última carta a Aline

Descubra “A Última Carta a Aline”, um conto que mergulha profundamente no suspense psicológico, explorando a complexa relação entre a doutora Aline Haleinad e sua paciente, Aline von Lordíh. A narrativa se desenrola em torno de uma carta misteriosa que revela as camadas de suas psiques, trazendo à tona questões existenciais, sentimentos reprimidos e a busca pela redenção.

A Última Carta a Aline - Contos de Urzeda
A Última Carta a Aline – Contos de Urzeda

Contos de Urzeda apresenta: A última Carta a Aline – Eber Urzeda dos Santos

À espera da próxima paciente, a médica psiquiatra, doutora Aline Haleinad, serviu-se de uma xícara de chá, sentou-se e fixou os olhos nos papéis sobre a mesa. De um lado, documentos da burocracia cotidiana aguardavam apenas sua assinatura; do outro, o prontuário da paciente Aline von Lordíh, uma jovem tomada por emoções conflitantes, instigava sua reflexão. Como de costume, a doutora Haleinad leu as anotações da primeira sessão da senhorita Lordíh e, em seguida, deitou-se no divã de seu consultório para ponderar sobre o caso e tentar mapear os passos da paciente, tomando o presente como ponto de partida.

O ato de percorrer o caminho inverso dos pacientes, como se calçasse os sapatos deles, trazia-lhe tanto prazer na profissão quanto a empatia necessária para humanizar as relações no consultório, garantindo diagnósticos mais precisos. Ela chamava esse procedimento de Áidnal Empátheia: a técnica do chão firme. Embora o método ainda estivesse na fase experimental, havia nele uma lacuna perigosa demais para ser ignorada. Ela sabia disso, mas preferia fechar os olhos.

Após os cumprimentos iniciais, a senhorita Lordíh, inquieta, observou o magnífico contraste entre o tom bege dos móveis e a escuridão de alguns cantos da sala, por onde a luz fosca e atrevida que atravessava a janela não chegava. Apesar de considerar os cantos escuros de sua alma mais amplos que os espaços iluminados, imaginou-se dentro da sua própria vida. As sombras geométricas projetadas pela pequena porta aberta do armário lateral, próximo à mesa da doutora, a incomodaram. Como um sonâmbulo com os braços estendidos, Lordíh caminhou até a porta, fechou-a e a pressionou por alguns segundos, como se quisesse garantir que permaneceria fechada. A doutora, atenta aos passos e gestos da paciente, apenas assentiu com um sorriso e agradeceu: “Obrigada… muito gentil da sua parte.”

A jovem mal esperou que a doutora a convidasse a se acomodar e se jogou, de qualquer jeito, no divã, apertando a bolsa de couro marrom contra o peito. A doutora Haleinad sentou-se e respirou fundo várias vezes, diminuindo o ritmo gradualmente e deixando que sua presença fosse notada. As mãos da senhorita Lordíh começaram a relaxar, afrouxando o aperto na bolsa. Seus pés inclinaram-se levemente para os lados, e seus olhos, antes inquietos, tornaram-se menos curiosos quando a doutora sugeriu:

— Você pode deixar sua bolsa sobre a mesa, se quiser.

— Não, melhor não! Ela está bem aqui, não incomoda! — respondeu a moça, tensionando novamente os pés e as mãos, apertando a bolsa com mais força, num abraço protetor.

— Tudo bem, como preferir! — disse a doutora com voz calma, enquanto repetia os exercícios de respiração. Logo continuou: — Então, senhorita Lordíh, como você se sente hoje?

Ao ouvir a pergunta, a doutora percebeu um certo desconforto nas ações da jovem. Esta voltou a apertar a bolsa com força, encarando a doutora, mas com um olhar de soslaio, direcionado para a bolsa, como se quisesse adverti-la de algo.

— Há algo aí dentro que você queira me mostrar? — perguntou a doutora Haleinad, ao perceber o jogo de sinais da paciente.

A psiquiatra desviou o olhar, descruzou as pernas e as cruzou novamente para o outro lado, tentando dissimular um interesse quase pessoal pelo conteúdo da bolsa. Lordíh a olhou desconfiada, encolheu os ombros, franziu a testa e mordeu o lábio inferior. Em seguida, olhou para o teto e encolheu todo o corpo.

— É uma carta dele. Ele me chama, sabia? Acho que ele me quer. Ele está me esperando… no céu… ou nas profundezas. Ele não é apenas Moby Dick, não é só um mar. Ele é do tamanho do oceano, ele é o próprio oceano. Ele me espera… acho que ele é mal!

Depois de algum tempo em que a paciente parecia caminhar pelo teto com seus pensamentos e olhares, a doutora decidiu quebrar o silêncio:

— Diga-me mais sobre ele, sobre a carta.

A senhorita Lordíh baixou os olhos para a bolsa. Mas, ao olhar novamente para a doutora, vendo-a respirar fundo e tranquila, deixou-se levar.

— A senhora quer que eu leia, é isso?

A doutora Haleinad acomodou-se melhor na cadeira, voltou a cruzar as pernas na direção oposta e, com um tom amistoso, respondeu:

— Por favor!

Depois de tanto apertar a bolsa, esta estava toda deformada. Com gestos suaves e precisos, a senhorita Lordíh levantou-se, sacudiu a bolsa, e o ruído estridente do zíper ecoou por toda a sala. Ela olhou para dentro da bolsa e, em seguida, voltou os olhos para a doutora. Ver o zíper aberto parecia incomodá-la. Com a ponta do dedo indicador, acariciou as margens dentadas da bolsa aberta, que para Lordíh não estava apenas aberta, mas escancarada, representando um iminente perigo, prestes a desnudar-lhe a alma. De dentro da bolsa, a carta parecia intimidá-la. Ela voltou os olhos para a doutora e, sem desviar o olhar, alcançou a carta.

Um envelope cor de pêssego tornou-se agora o centro das atenções no consultório. A doutora ajeitou-se na cadeira e fingiu escrever algo no prontuário de Lordíh. Seu pé direito balançava descompassado, e suas mãos suadas esfregavam-se involuntariamente. Enfim, a doutora Aline Haleinad tomou consciência do desconforto que a curiosidade lhe causava. Então, decidiu fazer uma breve pausa para recompor-se. Com o melhor de seus sorrisos empáticos, mas com a cabeça levemente inclinada, levantou-se e deu as costas à paciente.

— Enquanto eu preparo um chá, se quiser, e se sentir à vontade, pode ler a carta para nós! — disse a doutora, enquanto sentia uma leve arritmia, fruto da confusão de afetos que lhe atormentava a alma. Percebendo o desvio em seu próprio comportamento, ela fez uso de um exercício mental para recuperar o autocontrole. Imaginou a figura magra e desajeitada de Dom Quixote de la Mancha — caracterizado com o charuto e os óculos de armação redonda de Freud — com um sorrisinho cínico, repetindo mentalmente: “Acalme-se, cavalinho, o cavaleiro está no comando!”

Aline von Lordíh atirou a bolsa num canto qualquer; já não lhe era importante. A carta, sim, essa foi acariciada como se fosse um bebê. Embora a senhorita Lordíh mantivesse a respiração calma e uma pequena cavidade no canto esquerdo da boca, parecendo um meio sorriso, seu olhar estava estático, como o de alguém que relembra uma cena de pavor vivida na infância. Um feixe de luz iluminava a carta, dando-lhe um tom mais vívido que hipnotizava tanto a doutora quanto a paciente. “Acho que extrapolei na empatia”, pensou Haleinad, enquanto envolvia a xícara de chá com as duas mãos, deixando-se distrair pelo aroma de hortelã-pimenta.

A jovem Lordíh, enfim, abriu o envelope. Com cuidado excessivo, retirou um papel de carta rosado, adornado com sombras escuras e gravuras de corações e flores. O estilo gótico do papel deixou ambas as Alines em transe. Por um momento, a única diferença entre a paciente e a psiquiatra parecia ser a ocupação do divã. Ao final, despertando-se de uma espécie de transe, a doutora notou que o envelope cor de pêssego também fora parar num canto qualquer da sala, pois, assim como a bolsa, seu valor estava na utilidade: proteger a carta. Portanto, concluiu ela, o valor das coisas úteis está sempre fora delas mesmas. Levou a xícara à boca, mas manteve o olhar atento à senhorita Lordíh, que, depois de alguns rituais estranhos, começou finalmente a ler a carta:

Querida Aline,

Perdoe-me por este papel de carta, talvez gótico demais. Sempre tento escolher as coisas certas. As flores secas que sombreiam o papel parecem tão eu, tão melancólicas, que encontrei na arte delas um reflexo do meu desejo quase patológico de conservar meus humores tristes. Este papel não é um simples acaso; é uma escolha que me permite economizar palavras sobre meu estado de espírito. Mas não se preocupe, não é minha intenção culpá-la de nada. É apenas uma questão informativa, um capricho narcisista meu, nada mais. Afinal, a neurose de buscar perfeições mundanas ainda é minha. Você sabe bem: eu sempre procuro o certo para tudo na vida.

Desconfio… melhor dizendo, estou certo de que minha incompletude me condena. E para cada um desses milhões de pequenos espaços vazios que formam o meu ser, existe um desejo que me impulsiona. É esse movimento que me mantém vivo, pois, para cada vazio preenchido, um novo vazio, uma nova falta surge do nada, ainda mais sedenta que as velhas faltas, clamando por seus objetos ou sujeitos.

Hoje, lembrei-me do último dia em que estivemos juntos: você cantava e rodopiava seu vestido, como sempre fazia quando se sentia feliz. Naquele instante, eu me permiti apenas contemplar você girando sobre a areia úmida. Às vezes, molhava seus pés só para ver você saltar e rir ao vento, enquanto os caracóis dos seus cabelos, vermelhos como as folhas outonais de carvalho, se moviam como molas flutuantes. Tudo parecia lindo demais. Infelizmente, a felicidade cansa. Eu sei, você sabe: você se cansou de saltar, e seu riso foi embora com o vento que deixou de soprar. Nos seus cabelos, os caracóis, agora cinzentos e pesados, se arrastavam como sonhos repetidos. Tentei molhar seus pés novamente, numa tentativa quase desesperada de recriar aquele instante de felicidade, mas a água esfriou rápido demais, e o que antes era motivo de alegria, agora a entristecia. E ao vê-la triste, eu olhava para você e só via a mim mesmo.

Acredito que foi por isso que parti: pela falta de estranhamento, pela ausência de sensações inquietantes. Acho que nos tornamos iguais com o tempo. No começo, eu via em você uma escolha inversa do que eu era, porque nunca me suportei. Via você dançando como se quisesse coreografar seus sonhos em movimento. E eu, num canto qualquer, lia tudo que me era estranho, como se quisesse interpretar meus sonhos na literatura, na ficção. Enquanto éramos leitor e bailarina, enquanto projetávamos no outro aquilo que desejávamos para o nosso relacionamento — nosso amor —, conseguimos manter o estranhamento necessário para seguir em frente. Porém, o amor, minha querida, ele se consome; não conseguimos amar o outro pelo que ele realmente é. Daí a desilusão: a falta de estranhamento nos tornou iguais, incapazes de reconhecer o outro como um ser com seus próprios desejos.

Decidi partir quando percebi que você deixou de dançar para ler, e eu deixei de ler para dançar. Era uma armadilha: no afã de querer agradar o outro, desviamos a rota de nossos sonhos. Isso tem sua beleza, preocupar-se com o outro, ser ou tentar ser empático é, de certa forma, um ato corajoso. Porém, querida Aline, eu sou a pessoa mais desinteressante do mundo. Não quero alguém que goste de livros como eu, que seja corintiano e escreva poesias. Não, esse sou eu, e não há nada mais irritante do que ser eu; por isso busco alguém que não seja meu espelho, mas sim um escape de mim mesmo.

Nos relacionamentos, um sempre ama mais que o outro, mas nunca saberemos quem ama mais. No nosso caso, pergunto: quem de nós dois era o mais vazio de si? No meu caso, no amor, eu desejo me sentir amado e amo a ideia de ser amado; o problema surge ao perceber que o outro me ama mais do que eu me amo. Entretanto, se alguém me ama mais do que eu me amo, há algo de podre… e não é no reino da Dinamarca.

Sinto muito por não termos oficializado a despedida. Talvez eu não conseguiria dizer-lhe tudo o que agora escrevo. Não entre soluços, não entre olhos cheios e alma vazia. Talvez a literatura seja a única forma de amor sem reciprocidade real, pois, enquanto escrevo, imagino você ao meu lado e digo-lhe tudo que desejo, mas não lhe dou o direito de resposta. Talvez por isso, penso, a escrita seja um atestado de covardia.

Espero que você encontre alguém para preencher seus vazios aos poucos. Que você seja sempre você, e ele, sempre ele. Sem mais, devo voltar às profundezas agora. Lá, não sou, nem tento ser, um super-homem, que faz tudo no automático. Lá, dou-me o direito de rir, chorar e viver as imperfeições que me são características, como qualquer outro ser humano, porém sem este fardo chamado corpo. Espero fazer as coisas certas para vê-la algum dia no céu.

Dito isso, despeço-me. Adeus!

***

Ao terminar de ler, a senhorita Lordíh suspirou aliviada. Jamais tivera coragem de encarar a carta à luz da razão, pois carregava a culpa pela partida de seu amado em busca dos mistérios do além-mundo. Para a doutora Haleinad, aquele era o momento mais perigoso da consulta: libertar a paciente e, ao mesmo tempo, perdoar a si própria. Observando o risinho cínico da senhorita Lordíh, ela se levantou, atordoada, e foi até a janela. Abriu as cortinas, permitindo que os raios de sol da tarde goiana invadissem a sala. Ainda insatisfeita, abriu também a janela, na esperança de que um sopro de ar fresco lhe devolvesse um mínimo de controle emocional.

Junto à leve brisa vespertina, o cheiro de fritura dos restaurantes do centro comercial e o aroma dos abacaxis recém-cortados dos ambulantes penetraram na sala. Uma inquietação intensa tomou conta de seu espírito ao perceber que a senhorita Lordíh havia deixado o consultório sorridente, sem se despedir e sem se preocupar com o diagnóstico. A doutora diagnosticou em si mesma um humor deprimido, uma sensação de culpa e inutilidade, ao notar que sua paciente levara consigo apenas a bolsa, deixando a carta gótica sobre o divã e o envelope cor de pêssego num canto escuro da sala.

Aline Haleinad, desde o alto de seu prédio, viu Aline von Lordíh caminhar pelas calçadas e desaparecer como um fantasma pelas ruas da capital. Do outro lado da rua, em um daqueles restaurantes pomposos, com paredes de cristal, comidas alegres e preços tristes, ela observou as pessoas que entravam sorrindo, fantasiadas pela conquista de estar ali. No entanto, por sua experiência clínica, ela sabia que, ao servirem a mesa com os mais belos pratos, os clientes daquele belo restaurante teriam duas visões contrastantes: de olhos baixos, veriam um prato caro de comida honesta e desejada; de olhos erguidos, veriam um mendigo à porta, de mão estendida e olhar desejante. O sufocante mal-estar daquela cena fez com que ela apertasse a barriga com uma das mãos e cobrisse a boca com a outra, para calar o grito ou conter o vômito.

A doutora Aline Haleinad fechou as janelas e as cortinas da vida real e enfrentou, pela última vez, o desassossego de seu consultório. Ela o viu, como há muito não via, apenas como um simples dormitório. Sobre a mesa, uma luminária criava um círculo perfeito de luz e vazio. A passos lentos, como alguém que se aproxima do perigo, ela se dirigiu ao envelope. Pegou-o com cuidado e levou-o ao rosto, fechou os olhos e inalou o aroma que dele emanava. Sobre o divã, a carta a esperava, como alguém que implora para ser ouvido. Apanhou-a, de certa forma horrorizada. Aquela carta parecia ter vida própria, além do próximo leitor. Por medo, ou talvez por respeito, ela não quis conferir-lhe a fragrância. Caminhou sem tirar os olhos da carta e sentou-se à mesa. Desdobrou-a e a posicionou sob a luz. Ela passou os olhos pelos parágrafos manuscritos, caprichosamente, e parou ao perceber que Aline von Lordíh não havia lido o post-scriptum. Inclinou-se abruptamente para trás e, embora soubesse o desfecho da carta, voltou a tapar a boca e apertar a barriga ao ler:

“P.S. Eu já não existo mais, minha querida Aline Haleinad von Lordíh. É hora de sair deste quarto, agora é com você!”

Após alguns minutos de reflexões e lágrimas, Aline decidiu se desfazer de todas as cartas e de todos os prontuários das centenas de Alines que passaram pelo seu consultório imaginário. Ela, então, abriu as cortinas, escancarou as janelas e os braços, deixando a brisa passear livremente por seu corpo, agora pleno de si.

Abaixo, do outro lado da rua, admirando o espetáculo quase teatral da janela aberta, cuja atriz parecia abraçar o mundo todo, um sujeito, daqueles que percebem o mundo como um palco, a observava encantado. Aline percebeu-se notada, real, viva, e alegrou-se ao rever o mendigo: “Já sei quem pode cuidar bem dos meus antigos segredos”, pensou ela, contemplando a liberdade do pobre homem desejante.

Hoje, quem passa pelo Viaduto da BR-153, sobre a Avenida Anhanguera, em Goiânia, sentirá um estranhamento, quase um temor inquietante, ao ver a vida real imitando a arte, na cena de um mendigo deitado em um divã bege, colecionando envelopes cor de pêssego e lendo cartas endereçadas a uma tal Aline.

Eber Urzeda dos Santos

Coleção: Trevas do Eu

Roßtal – Alemanha

23/02/2021

Instagram: @urzedacontos

“Esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência”.

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