As Verônicas

Capa do conto - As Verônicas

As Verônicas

Dedicado a Verônica Di Machado

Sobre as Inquietudes do Ego

— ¡Háblame de ti, por favor! — o pedido veio carregado de um interessante misto de gentileza e curiosidade.

Verônica parou de brincar com o copo de Whisky on the Rocks que, até então, girava em movimentos lentos e hipnotizantes entre seus dedos finos e longos. Levou o copo à boca e o esvaziou em um só gole, e o líquido âmbar dançou freneticamente por sua garganta, deixando um rastro de calor quase espiritual. Antes de repousar o copo de cristal cuidadosamente desenhado sobre o balcão escuro e polido do bar, ela contemplou as duas pedras de gelo solitárias em seu fundo. Deu um sorriso misterioso e convidativo, iluminando seus olhos castanhos como uma promessa a uma segunda dose.

— Por favor, señor camarero, ¿sería usted tan amable de traerme otra copa de whisky? — disse, permitindo que suas palavras fossem pontuadas pelo doce aroma de tabaco e ervas que se misturava ao ar pesado daquela noite.

Desgarrada do conforto de seu pequeno mundo, onde ouvia incessantemente sobre os outros, Verônica decidiu, com uma coragem nascida da novidade, explorar as fronteiras de suas próprias inquietudes. Agora sentada à barra de um charmoso Piano Bar, em uma cidade cosmopolita não mapeada de um país vizinho, foi instigada, pela primeira vez, a falar sobre si mesma. Aquelas antigas trovoadas de medo, que uma vez rugiram em seu coração, deram lugar à coragem instigada por um desconhecido e pelo efeito embriagante do álcool em seu cérebro. Era como se cada gota fosse um estímulo à liberdade, um convite para revelar sua verdadeira essência:

— Eu sou uma Verônica! — afirmou com um toque de orgulho, e sua voz suave flutuou acima do som baixo e melancólico do piano.

Juan, um homem que emanava um interessante carisma latino, ligeiramente confuso com a declaração, inclinou a cabeça. Com seus olhos negros espelhando traços de curiosidade, perguntou:

— ¿Eres una, o la Verónica? — sua voz, embora baixa, carregava uma força persuasiva que parecia desafiar qualquer pretensão de superficialidade.

— Sou uma das Verônicas. A despeito de algumas semelhanças ocasionais, somos radicalmente distintas em inúmeros aspectos — replicou ela, parecendo encontrar certo prazer em traçar as complexidades de sua identidade. — Poderíamos ser divididas, em essência, em duas categorias distintas e irredutíveis.

Juan, o interrogador, franziu a testa em confusão, capturado em meio à um labirinto inesperado de nuances da identidade que esta mulher começara a desenhar. Ele não esperava que a conversa tomasse uma virada tão espirituosa e existencial. Por outro lado, Verônica parecia estar inteiramente à vontade, navegando com segurança nas marés tumultuadas de sua própria introspecção.

A despeito da expressão perplexa de Juan, Verônica prosseguiu, lançando um olhar lúcido e calmo, que contrastava vivamente com a música vibrante e o ambiente alegre que a rodeava:

— Eu era, digamos, uma moça alienada — admitiu. — Habitualmente buscava alívio e escape nos prazeres mundanos, sempre fugindo do meu eu mais profundo. Era como se eu estivesse num palco, desempenhando o papel que as pessoas tinham esculpido para mim. Cheguei ao ponto de acreditar que eu realmente era o reflexo daquelas expectativas alheias. Contudo, um dia na universidade, em uma aula sobre a transcendência do ego, o professor citou Sartre e, olhando diretamente para mim, disse: ‘Você, Verônica, é duas!’

Nesse momento, o jovem latino, ainda absorto naquela trama de palavras e reflexões, reajustou-se em seu banco alto, cujo couro rangia levemente sob o seu peso. Sentindo o gosto do inesperado naquela conversa, decidiu acompanhar a nova dose de whisky de Verônica com uma taça de vinho tinto – um Cabernet Sauvignon de sabor forte e aveludado.

Foi então que notou algo surpreendente: a voz de Verônica, suave e melodiosa, estava agora em perfeita sincronia com o piano que, naquele exato momento, tocava “A Arte da Fuga” de Bach. Mesmo em meio à sua embriaguez crescente, Verônica manteve seus olhos e ideias afiados, sua voz se entrelaçando perfeitamente com a complexa melodia de Bach, fazendo Juan se entregar ao ritmo harmonioso daquela inebriante dança de palavras e música.

— Assim que comecei a escutar os exemplos do professor, um novo mundo começou a se desenrolar diante dos meus olhos. Percebi que as diferentes Verônicas carregam consigo inquietações que desafiam o entendimento tradicional, que transbordam as fronteiras do senso comum da comunicação e da percepção da realidade — continuou Verônica, com a voz cheia de intensidade. — Ou seja, uma Verônica está perpetuamente em conflito com a outra. Deixe-me ilustrar com um exemplo concreto do que me levou a este intrigante estado de ser.

Ela fez uma pausa, seu olhar vagou pelo bar cheio de vida e mistério enquanto um sorriso malicioso brincava em seus lábios.

— Ao regressar a casa, após uma semana especialmente exaustiva de trabalho, eu estava imersa na ansiedade por um banho, uma espécie de ritual de limpeza para me libertar da sujeira física e metafórica da semana. Enfrentando o espelho do banheiro, maldito instrumento de autorreflexão, me deparei com uma imagem distorcida de mim mesma. Ali surgiu a outra Verônica, uma mulher um tanto desagradável, e falou: “Nossa, acho que engordei!” Nesse exato momento, as duas Verônicas ficaram putas de raiva: a Verônica que se viu gordinha e a Verônica que percebeu a mudança.

Juan não pôde conter um sorriso diante da narrativa de Verônica. Seus olhos percorreram o corpo esguio da moça, desprovido de quaisquer excessos que a sua história poderia sugerir. “No veo ninguna grasa, además ella está buenísima. Pero bueno, serán cosas de mujeres. Mejor me callo y continúo catando mi vino”, pensou ele, com um sorriso desenhado nos lábios, mas mantendo seus pensamentos privados.

Voltando sua atenção para a taça de vinho em sua mão, Juan apreciou o sabor robusto e encorpado do líquido carmesim, permitindo que o sabor e o aroma o distraíssem por um momento da conversa complexa e envolvente. Logo, no entanto, seus olhos retornaram à Verônica, atraídos pela melodia de seu sotaque português que bailava sobre as notas de Bach, enquanto ela filosofava, agora, em um espanhol surpreendentemente fluente.

Em meio à luta para reunir seus pensamentos e moldá-los em palavras coerentes, Verônica viu sua segunda dose de whisky chegar, como um pequeno troféu brilhante oferecido pelo universo em reconhecimento à sua honestidade brutal e encantadora. Ela observou o líquido dourado, seu brilho resplandecente dançando com as duas pedras de gelo como amantes entrelaçados em uma dança íntima. A luz cálida do bar incidia sobre o copo, tornando o líquido ainda mais dourado.

Aproximando o copo do rosto, Verônica permitiu-se sentir a mistura embriagante de aromas: a madeira defumada do whisky, a frescura do gelo e o quente aroma do álcool. Sobre as maçãs de seu rosto surgiram duas erupções rosadas, covinhas que anunciavam um leve sorriso de satisfação. Ela estava se deliciando com o momento Kairós da bebida: aquele ponto preciso em que o calor incendiário do álcool se encontra com o frescor gélido das pedras, criando uma simbiose perfeita de contrastes.

Mas como todas as coisas, este momento também se dissolveria no fluxo eterno de Khronos, e a bebida se tornaria apenas um líquido alcoólico diluído em água. Pelo menos era o que Verônica pensava, uma filosofia de bar que a acompanhava desde seu primeiro gole em uma barra de bar.

— Por isso decidi, ou melhor, nós decidimos sair um pouco — começou ela, os olhos brilhando com um misto de humor e desafio. — Tomar algo forte, talvez isso ajude a outra Verônica a me dar um pouco de paz, a deixar-me transcender um pouco. Ouvi-la, entender o que ela quer… e boa música sempre ajuda. Parece que a outra Verônica tem uma queda por ambientes mais agitados, por, digamos, inferninhos. Quem diria, acredito que ela seja funkeira.

— ¡Bueno, bueno! ¿Pero cuál Verónica está aquí conmigo? — perguntou Juan, a curiosidade vívida nos olhos escuros, enquanto ele continuava a degustar seu vinho tinto, os tons de violeta e rubi do líquido parecendo ainda mais vibrantes sob a luz difusa do bar.

— Até o terceiro uísque, sou a Verônica que se perde em Bach, que se encontra nas palavras de sonetos e deixa rastros de pensamentos em páginas virgens — respondeu ela, os olhos dançando com uma chama quase travessa. — Depois disso, posso ser encontrada perdida na multidão de algum antro noturno, “dançando até o chão” ou até que meus pés recusem a me obedecer e me entregando a cervejas de origens questionáveis.

Juan riu, uma risada suave que parecia flutuar sobre as notas melódicas do piano, que agora tocava um ritmo mais acelerado, refletindo a mudança no clima da conversa.

— ¡Wow! ¿Y cómo termina eso? — perguntou ele.

Verônica encolheu os ombros, um sorriso amargo adoçando seus lábios enquanto ela admitia:

— No dia seguinte. Quando o sol nasce e a realidade do que aconteceu na noite anterior se infiltra através das cortinas fechadas. É quando as duas Verônicas se encontram novamente no espelho do banheiro e o julgamento começa. Nos tornamos vítimas de nossos próprios afetos, repartindo culpas e angústias, em um processo tortuoso e inebriante, conhecido popularmente como ressaca.

O sorriso de Juan cresceu ainda mais enquanto ela respondia, um brilho malicioso se apossou de seus olhos: — ¡Oh, vaya, creo que te quiero!

Verônica engasgou com uma das pedras de gelo, a surpresa evidente em seu rosto. Ela cuspiu a pedra de gelo na mão, sorrindo timidamente, mas sua mente já estava trabalhando, processando as palavras de Juan. Não poderia deixar uma declaração tão audaciosa como “Eu creio que te amo” passar sem uma reflexão adequada, especialmente após uma dose tão generosa de whisky.

— Veja bem, meu querido misterioso interlocutor — começou Verônica, interrompendo o sorriso de Juan com um olhar sério. Ela se inclinou sobre o balcão, a luz do bar caindo em cascata sobre seus cabelos longos, lançando reflexos brilhantes. — Aproveito que ainda não pedi o terceiro uísque, o qual, sem dúvida, transformará nossa conversa em algo mais… abstrato, para lhe informar de algo importante.

Ela pegou seu copo, brincando com a pedra de gelo que ainda flutuava no líquido âmbar. Seus olhos estavam presos nos dele, transmitindo uma sinceridade perturbadora.

— Você não me ama de verdade e nunca me amará. Isso é impossível — Ela soltou as palavras como se estivesse soltando pássaros de uma gaiola, cada uma alçando voo com a precisão de uma flecha. — Afinal, você ama a ideia que criou de mim a partir do meu comportamento e de outras fontes que escolheu para pintar o quadro em sua mente. Mas devo adverti-lo, meu comportamento não é constante. Ele é uma tentativa, uma tentativa desesperada de me desligar do mundo por uma mísera noite.

Verônica soltou uma risada baixa, mais como um suspiro do que um verdadeiro riso.

— A ideia que você faz de mim, portanto, não diz nada sobre mim, apenas sobre você. Mas pensando bem, da mesma forma que você se relaciona com o que crê que eu sou, eu também me relaciono com o que creio que você é.

Seus olhos, brilhantes de whisky e revelação, encontraram os de Juan.

— A ideia que faço de você agora é encantadora. E nesse sentido, se a ideia que faço de você pertence a mim, então eu sou a encantadora aqui, não é? — Verônica terminou, um sorriso provocante brincando em seus lábios enquanto levantava o copo em um brinde silencioso à complexidade humana.

Os dois explodiram em uma risada melódica, dissonante com as notas eruditas do piano ao fundo, mas em harmonia com a autenticidade do relacionamento que começava a brotar. O som do riso deles preencheu o espaço, misturando-se ao sussurro das conversas, ao burburinho do balcão e ao cheiro de vinho e whisky que perfumava o ar. No fundo, a lareira crepitava, lançando luzes dançantes sobre o estuque antigo e a madeira escura do bar. Os tons quentes do lugar pareciam realçar o brilho das almas expostas naquele momento.

O rapaz, então, pediu outra taça do vinho. Com um sorriso enigmático, ele propôs um brinde às Verônicas. Ela hesitou, mas então, se lembrou de Kairós: o momento supremo para amar é o momento em que o amor se faz presente. E naquele instante, tudo estava presente: o som, o cheiro, o gosto do whisky em sua língua, a sensação de liberdade e a conexão com esse estranho que parecia tão familiar.

Então, num gesto teatral que arrancou risos das pessoas ao redor, ela pediu o terceiro uísque, levantou o copo e proclamou um brinde às transcendências dos egos. E com um ar de desafio, tomou de um só gole o último drinque da noite. O sabor forte do uísque misturado com o gelo queimou sua garganta, uma deliciosa dor que lhe deu coragem.

Ela atirou o copo vazio sobre o balcão do bar, provocando um tilintar que rivalizava com a música. A atenção voltou-se para eles, mas ela não se importou. Verônica se virou para o rapaz e, estendendo a mão, disse com uma voz embriagada de sinceridade:

— Venha comigo, quero que conheça a outra Verônica. Ela é uma pessoa fantástica!

O rapaz ficou encantado. Ele tinha uma Verônica à mão e estava prestes a conhecer a outra. Contudo, anos depois, se viu diante do mesmo espelho maldito do banheiro da casa das Verônicas.

— ¡Juan, Juan, te estás quedando calvo! — e o eco da voz do espelho de Verônica ressoou no banheiro de azulejos brancos e roupões macios.

Os dois Juans, o do espelho e o da realidade, ficaram putos de raiva e resolveram sair: nada que três Whiskys on the Rocks não resolva.

Eber Urzeda dos Santos

As Verônicas

Coleção: Trevas do Eu

Nuremberg – 21/02/2020


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