Ensaio sobre Verônicas: Uma Jornada de Autoconhecimento e Superação
No conto Ensaio sobre Verônicas, você é convidado a mergulhar nas profundezas da mente de Verônica, uma protagonista marcada por traumas e dores passadas. Através da arte e da introspecção, ela busca exorcizar seus fantasmas e encontrar paz em um cenário sueco melancólico. Descubra como essa narrativa envolvente, repleta de simbolismo e emoção, revela as camadas mais profundas da alma humana. Explore agora essa história no blog e deixe-se levar pela intensidade de Ensaio sobre Verônicas.
Verônica despertou-se depois de uma rara noite sem pesadelos, numa manhã fria e cinzenta de Estocolmo. Não fosse a presença de um homem nu, dormindo em sua cama, aquela seria apenas mais uma manhã comum, um dia qualquer. Os raios de sol fracos de inverno mal conseguiam atravessar as pesadas cortinas, deixando o quarto numa penumbra melancólica. Levantou-se e juntou suas roupas espalhadas pelo quarto, peças que contavam a história de uma noite de esquecimento temporário.
Caminhou descalça pelo assoalho de madeira antiga, sentindo o frio que se infiltrava em seus ossos. Foi à cozinha, onde preparou uma xícara de café forte. Deliciou-se com o aroma do café fresco e, segurando a xícara com uma força incomum, olhou pela janela e maravilhou-se com o contraste entre a ruazinha Tjusarstigen, em Värmdö, e a imensidão do lago que precedia o mar Báltico, uma vista que sempre lhe trazia uma paz efêmera.
Ao retornar ao quarto, sentou-se em uma cadeira de bambus entrelaçados diante de sua cama. Sua atenção foi atraída para um cavalete com uma tela para pintura em branco, além de uma mesinha com alguns pincéis sobre uma paleta tingida com restos de sua última aquarela. Havia algo quase terapêutico na ordem caótica de suas tintas e pincéis, um reflexo de sua mente constantemente inquieta.
Ela envolveu a xícara com as duas mãos, sentindo o calor se espalhar por seus dedos. O primeiro gole quase queimou seus lábios, mas ela acolheu a dor, deixando que se misturasse com o prazer aromático do café, que lhe trouxe uma energia passageira. Entre goles, definia as formas daquele estranho adormecido em sua cama, imaginando-o retratado a grafite em sua tela, um esboço de um momento fugaz.
Levantou-se e caminhou atenta, sem tirar os olhos do estranho em sua cama. Chegando diante da mesinha com o material de sua arte, viu surgir a parte de um livro sob a sua paleta de pintura. Era um livro que, anos atrás, fora responsável por deixar a pequena cidade de Hidrolândia, no interior goiano, para aventurar-se pela desconhecida e fria Suécia. O livro, um velho amigo e conselheiro.
Voltou a sentar-se, envolvendo-se em um cobertor vermelho e negro, uma tentativa de se aquecer tanto por fora quanto por dentro. Abriu o livro intitulado “Trevas do Eu” até chegar à página trinta, coincidindo com a sua idade à época da primeira leitura do conto “Setembro Tinto”. Sua respiração se tornou mais profunda e controlada, uma prática de yoga que ela incorporara na tentativa de manter a ansiedade à distância. O cheiro de café misturava-se ao aroma dos troncos de pinho que queimavam na lareira, criando uma atmosfera quase hipnótica.
Olhou para a cama, onde aquele corpo, às vezes troféu, às vezes contrapeso, repousava. Lá estava ele, invernando como se a estação fria e escura do país houvesse apenas começado. Era uma metáfora perfeita para o estado de sua própria alma, às vezes congelada, às vezes ardente, mas sempre esperando por um despertar. Tomou coragem e leu o conto:
Setembro Tinto.
O reflexo de seus olhos na lâmina afiada e voraz causou-lhe calafrios, mas ao mesmo tempo, uma excitação mórbida. A visão do seu próprio sangue quente correndo pelo pescoço, cobrindo-lhe os seios e a alma, era um pensamento que a atraía e aterrava. Enquanto riscava levemente o pescoço com a faca, traçando um ziguezague de vida e morte, a triste e doce voz de Édith Piaf com “Non, Je Ne Regrette Rien” ecoava pelo quarto sombrio.
Anna Carolina, perdida em pensamentos de prazeres e mágoas, de amores eróticos e tristes, tentava convencer-se de não se arrepender de nada. “Amanhã todos estarão mortos”, pensou com um sorriso irônico, passando a língua de forma suave sobre o fio da faca, degustando o sabor agridoce de seu sangue e passado.
Na solidão de sua casa, longe de pais autoritários e amantes sedentos de sorrisos falsos, ela vivia entre filosofias e bruxarias. Livros de capas gastas e páginas amareladas ocupavam suas estantes e seu tempo, enquanto o mundo lá fora seguia indiferente. Duas amigas, não mais que isso. “Para quê?”, questionava-se. Uma delas, porém, pairava incerta entre coleguismo e amizade verdadeira. Carol combatia a solidão e o tédio com álcool e ervas, buscando sensações que a fizessem sentir-se viva. Fingia orgasmos com meninos e meninas, numa busca desesperada por algo que preenchesse o vazio.
Ela não tinha telefone, internet, nem se preocupava com cumprimentos cordiais. Sua presença era um desafio constante para aqueles que compartilhavam a mesma calçada. Certo dia, após uma noite tentando visitar o jardim das almas, viu-se frustrada ao ser saudada pelo sol. Pegou sua bolsa de fibras vegetais e saiu apressada. Seus tormentos se traduziam em tristeza e fome, lágrimas e trigo.
— Bom dia! Dê-me dois pães, por favor! — disse ela na padaria.
O balconista, o bancário, a professora de francês, quase todos que a conheciam evitavam o olhar direto. Quem se atrevesse a encarar aqueles olhos sempre acusadores e irônicos tinha a obrigação de ser sincero.
— Por que está me olhando? — perguntou Anna Carolina, desafiadora.
— É que… — o rapaz hesitou.
— Não precisa escolher palavras. Diga o que pensou e pronto: tenha brio, cara!
— Desculpa, é que… sua boca está sangrando.
— Por que se desculpar? Foi você que a fez sangrar?
— Não… eu só queria…
— Faça só o seu trabalho, meu querido. Só quero dois pães. E o pedido ainda foi acompanhado de um por favor: o que já é muito. Aff! Essa mania interiorana ainda me mata!
Anna Carolina retirou os pães da sacola plástica, colocou-os em sua bolsa e, no caixa, dispensou a sacolinha.
— Plástico?! Vocês não aprendem mesmo!
Ela passeou pelo centro da cidade, observando os cães de rua, os mendigos e os pardais. Pit dogs fechados, a biblioteca lacrada pela polícia e os enormes cadeados nos portões da igreja pareciam dizer: aqui nem Deus entra.
O ócio matinal e as migalhas dos pães diminuíam seu sofrimento e alimentavam os pássaros. As pessoas que passavam experimentavam sensações diversas ao vê-la: medo, pena, pavor, compaixão. Para uns, uma menina pobre e feia vestida de morte; para outros, uma pobre e linda menina vestida de luto.
Nas janelas dos casarões antigos que ainda resistiam ao tempo, meninos apaixonados aguardavam ansiosos a passagem da menina enigmática. Seus olhares cheios de desejo e curiosidade seguiam cada movimento dela. Enquanto isso, nos escombros dos casarões já demolidos, meninas confusas exploravam seus próprios corpos e sentimentos, na esperança de encontrar sensações que transcendessem a solidão. E como Anna Carolina se encantava com essa dualidade. Para os meninos, lançava um sorriso provocador, cheio de promessas não ditas; para as meninas, um sorriso ingênuo, repleto de compreensão. Ao deixar para trás esse rastro de sutil escárnio e esperança, ela se mantinha viva: espalhando desejo e, ao mesmo tempo, sua própria ausência.
Chegando em casa, Anna Carolina abriu a porta com um misto de raiva e desespero, jogou a bolsa sobre a mesa e deitou-se no sofá. Tentou acender uma pequena bituca de ervas e chocolate, mas as lágrimas da noite anterior haviam deixado o papel úmido, impossibilitando o fogo de se acender. Frustrada, desistiu e foi ao banheiro, onde jogou a bituca no vaso sanitário. Enquanto caminhava pela casa, uma sensação de inutilidade a invadiu. Abriu a janela enferrujada da sala e deixou que a luz do sol a cegasse por um instante. Entre abrir e fechar os olhos, sentia o calor do sol e uma náusea que parecia vir da alma.
Decidida a mudar sua vida sem sentido, Anna começou a agir. Pintou o cabelo de preto, adotou roupas curtas e coloridas, comprou um celular moderno e começou a tirar selfies provocantes. Vendeu as imagens aos seguidores do Instagram e inscreveu-se para um concurso público. A transformação era visível.
— Vê-me aí dois “pão”, anda! — pedia ela na padaria, com uma confiança recém-descoberta.
— Carol, minha querida, seu look tá arrasando! — comentava uma conhecida.
— Gostou, é?! Depois me liga, que a gente marca! — respondia ela, tentando se igualar às pessoas fúteis que, por não ter nada a dizer, diziam qualquer coisa sem sentido.
As marcas dos piercings, as tatuagens desbotadas e os riscos no pescoço ainda eram lembranças dolorosas. Ela deixou de pensar na vida para vivê-la. Por dois longos meses, viveu como uma celebridade das redes sociais. Até que, em uma tarde de setembro, durante um passeio pelo lago da cidade, ela olhou para a água e viu refletido o céu num tom tinto. Naquele momento bucólico, com nuvens rarefeitas e a calma do sol anunciando a primavera, viu seu rosto perfeito refletido e chorou pela última vez.
Foi encontrada ainda viva, mas a seu modo, cercada de incensos, vestida de preto, com coturno gótico e maquiagem pesada. Era como se quisesse viver a vida ao estilo de um conto de fadas sombrio, onde finais felizes eram substituídos por rugas, doenças e funerais de princesas leprosas e príncipes alcoólatras sem cavalos brancos.
Sete dias se passaram, e a cidade estava em pânico. Ninguém sabia ao certo se ela estava viva ou morta, ninguém ousava se aproximar ou perguntar. Meninos tristes caminhavam pelos corredores da escola, lamentando a perda de suas ilusões, murmurando: “Anna Carolina, infelizmente, já não existe…” Enquanto isso, meninas, não menos confusas, vestidas de luto branco, perambulavam pelos corredores, distribuindo bilhetes com uma mensagem ilusória: “Anna Carolina, sou eu…”.
Roßtal – Alemanha
26/09/2017
***
Verônica terminou de ler o conto e sentiu a mesma angústia que a consumira na primeira leitura. As palavras do conto ecoavam em sua mente, reavivando memórias dolorosas. Lembrou-se das inúmeras vezes em que pensou em abreviar sua própria existência, impulsionada pelo desejo de escapar do julgamento alheio. Para ela, as pessoas só a conheciam através de uma personagem fictícia que ela criara, uma fachada elaborada para não perturbar o equilíbrio social. Essa dualidade a atormentava: um eu inventado para proteger a si mesma, outro para proteger os outros, e um terceiro, indomável, que insistia em revelar tudo o que ela desesperadamente queria ocultar.
Na busca por proteger seu eu mais sincero, Verônica tomou a decisão de ir para Estocolmo. Lá, pretendia trabalhar com pessoas que, assim como ela, buscavam autenticidade na representação de si mesmas, mesmo que isso significasse a destruição do próprio corpo. Foi um alívio, algo muito próximo da felicidade, quando recebeu um e-mail convidando-a para trabalhar em um centro especializado no tratamento de pacientes depressivos e com comportamentos suicidas. Deixar a pequena cidade de Hidrolândia para cuidar de pessoas sedentas de respostas para a vida era, para ela, um novo começo. Recomeçar em um país desenvolvido, mas com altos índices de suicídio, representava uma resposta em si mesma.
Ao pegar a BR-153, rumo ao aeroporto Santa Genoveva, em Goiânia, Verônica contemplou a irônica placa à margem da estrada: “Perigo, depressão na pista!” A partir daquele momento, ela começou a perceber o relevo contínuo da estrada, suas imperfeições asfálticas, que faziam com que sua vida e seu táxi desacelerassem. Sentia tédio nesses momentos de lentidão, e pânico quando, na desaceleração, ouvia vozes que questionavam os vários porquês de uma existência que lhe parecia vazia.
Depois de um ano na Suécia, ajudando pessoas com transtornos depressivos, Verônica adquiriu novas perspectivas. Aprendeu a lidar com o olhar dos outros, a não se intoxicar com o veneno da tristeza que emanava dos encontros com o mundo e com pessoas que viam no outro as imperfeições que lhes eram próprias. Descobriu, também, que ao ouvir ruídos perturbadores, que invadiam seu íntimo silêncio, ela poderia usar a pintura como uma forma de exorcizar todos os seus demônios internos. Essa descoberta foi como uma luz no fim de um túnel escuro, um caminho para a cura e a compreensão de si mesma e dos outros.
***
Verônica deixou o livro sobre a cadeira, sua mente ainda ecoava com as palavras que acabara de ler. Seu olhar então se fixou no homem adormecido em sua cama, um modelo involuntário para sua arte. Com uma determinação renovada, pegou seus grafites e preparou tonalidades secretas, capturando a essência das peles nórdicas. Posicionou o cavalete estrategicamente em frente à cama, e começou a pintar com uma paixão quase febril.
Com o grafite em mãos, ela rabiscou as linhas tortas do corpo sonolento e frio. Desenhou o homem com o rosto afundado no travesseiro, como se o ato de respirar fosse desnecessário. Esfumaçou os detalhes corpóreos em sombras quase imperceptíveis, criando um jogo de luz e sombra, uma batalha entre a melancolia da luz solar e as nuvens cinzentas, parasitas do céu.
À medida que o homem nu ganhava formas densas em seu quadro, a imagem aterrorizante de seu velho pai começou a desaparecer. O conservadorismo machista dele, que tanto ditara os ritmos e princípios de uma relação pavorosa marcada por dependência, ciúmes doentios, domínio e pré-julgamentos, foi se esvaindo na tela.
Quando terminou o quadro, Verônica sentiu suas emoções transbordarem. Lágrimas inundaram seus olhos, enquanto as maçãs do rosto tingiam-se de vermelho, não mais de angústia, mas de ternura e alegria. O espectro do pai já não a assombrava mais. O homem nu estava agora confinado à moldura, e sua cama estava livre de todos os fantasmas do passado.
Ela sentiu uma leveza corporal absurda, como se o peso do mundo tivesse sido subitamente retirado de seus ombros. Um sorriso genuíno surgiu em seus lábios. Então, pegou sua lapiseira de assinaturas e, com mãos firmes e coração leve, escreveu uma dedicatória à personagem que lhe ensinou a ver a si mesma na escuridão:
“À inesquecível Anna Carolina, com amor.”
Eber Urzeda dos Santos
Ensaio sobre Verônicas
Coleção: Trevas do Eu
“Esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência”.
Leia também o conto que deu origem ao romance “As rosas ao pé de minha janela”: O horror de Hidrolândia
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A obra “Ensaio sobre Verônicas” integra a série do projeto ‘Contos de Urzeda’, selecionados para compor o livro de contos ‘Trevas do Eu’, de Eber Urzeda dos Santos.
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