Homem cortês, mulher triste: sobre o tempo

“Homem Cortês, Mulher Triste” é um conto que explora as sutilezas das interações humanas e as expectativas não correspondidas. Ambientado em uma praça de Goiânia, o texto aborda de forma filosófica e emocional como as interpretações e os julgamentos precipitados podem moldar nossas experiências e desilusões. Descubra essa narrativa envolvente que combina reflexões sobre o tempo e as complexidades do comportamento humano, proporcionando ao leitor uma análise profunda das relações cotidianas.

Homem cortês, mulher triste - Contos de Urzeda
Homem cortês, mulher triste – Contos de Urzeda

Contos de Urzeda apresenta: Homem cortês, Mulher triste – sobre o temo

— Oi, moça! — Saudou com uma voz suave, mas firme o bastante para cortar o ruído do movimento da cidade.

O sol generoso projetava-se sobre o cenário urbano daquele dia, criando um ambiente propício para um diálogo casual, porém profundamente filosófico. Depois de um breve diálogo sobre o tempo, não conseguimos chegar a nenhuma conclusão satisfatória. Então, meu querido amigo decidiu perguntar que horas eram a pessoas aleatórias. Para esse encontro fortuito, ele escolheu a garota mais bela e intrigante da cidade.

A abordagem foi tão imprevista que ela mal teve tempo de pensar durante aquele mero segundo de confusão e surpresa — um intervalo entre ser abordada por um estranho e formular uma reação: Spray de pimenta? Canivete suíço? Nada disso. Ela simplesmente parou, capturada pelo carisma inegável dele. Um homem atraente, de mãos vazias e visivelmente inofensivas, vestindo uma combinação casual de camiseta combinando com o tênis, aparentemente meticulosamente pensada. De repente, duas covinhas adoráveis adornaram o rosto da moça, como pequenas erupções de felicidade. Confesso que já vi pessoas comprarem alianças por muito menos.

— Bom dia! — continuou o galanteio, arrancando um tímido sorriso dela.

E de fato, foi um dia particularmente bonito. Uma manhã de junho com um sol generoso em Goiânia, o clima ameno contrastava profundamente com o frio cortante da Sibéria hidrolandense, que anualmente impelia seus filhos a migrar para o norte durante as festas de Santo Antônio, e só retornavam quando as jabuticabeiras começavam a florir novamente.

O par estava estrategicamente posicionado em um ponto onde os raios dourados do sol atravessavam as folhas farfalhantes das árvores, envolvendo-os em uma luz quente e suave. Eu, no entanto, permaneci na sombra, observando a cena desenrolar-se com um olhar atento e introspectivo, à maneira dos narradores em terceira pessoa, aqueles que normalmente carregam a vela e dissecam cada detalhe do enredo.

— Tudo bem? — Ele prosseguiu, exalando um charme natural que transcendeu a simplicidade do seu sorriso.

A moça, tomada pelo encanto, quase se viu como a princesa das fábulas, à beira de um beijo de despertar. Mas eis que o tempo se retorce e os relógios hesitam em seu ritmo frenético. Seu rosto se transforma em uma expressão doce, mais condizente com as princesas da Disney do que com as versões sombrias dos irmãos Grimm. Conhecendo meu amigo de longa data, eu sabia que as princesas de Grimm eram mais apropriadas para sua narrativa pessoal. Ele, um ávido leitor de literatura refinada, mas que sempre lutou para decifrar o labirinto das emoções humanas, falhou em identificar os sinais óbvios e subliminares oferecidos por ela, de que ela ansiava por um beijo.

Talvez o leve franzir dos lábios, as bochechas coradas e os olhos fechados, enquanto se equilibrava nas pontas dos pés, pudessem ter um significado completamente diferente no enigmático setor Norte-Ferroviário. Mas a questão permaneceu: estávamos no setor Central. Ele sempre considerou o pessoal do centro um pouco excêntrico: “melhor não arriscar”, deve ter pensado, ponderando suas opções. Talvez, para ele, aqueles gestos, embora tenros e levemente desajeitados, fossem apenas sinais de que sua interlocutora estava profundamente engajada na conversa, ou talvez enfrentando alguma instabilidade emocional: algo bastante comum entre as damas do centro, ou algo assim… vai saber!

O ar estava carregado com o aroma doce de flores de jasmim que brotavam nas proximidades da Rua 3 com a Rua 7 no setor Central, misturando-se ao cheiro da manhã fresca e dos grãos de café provenientes de um quiosque vizinho. As cores vibrantes das lojas e edifícios comerciais adicionavam um toque de surrealismo ao cenário, contrastando com o clima suave e casual do encontro. Enquanto eu observava de perto, não pude deixar de notar o espectro de cores presente no rosto dela, desde o tom rosado de suas bochechas até o brilho azul dos seus olhos, que refletiam a luz dourada do sol.

— Perdoe os meus modos um tanto rígidos, mas… — Ele iniciou, fazendo uma pausa dramática, uma estratégia “à la Tchekhov” que havia aprendido durante as noites intelectuais passadas com o saudoso Abujamra. Ele então retomou a conversa — posso fazer-lhe uma pergunta?

Sim, meus amigos, este é o seu estilo: fazer pequenas pausas para ponderar sobre a colocação pronominal. Como sou seu amigo de longa data, já o aconselhei várias vezes a moderar o uso das ênclises e mesóclises quando está na companhia dos amigos do futebol, pois nós, que jogamos bola, só somos fluentes na linguagem mais simples e rudimentar dos peixes: glub, glub, glub!

A jovem não emitiu uma palavra. Mas será que era necessário? Ela respondeu com um sorriso encantador e passou delicadamente a língua pelos lábios, adicionando um toque de brilho. “Agora vai!”, pensei, assim como ela deve ter pensado, e até quem não pensa teria pensado o mesmo. Subitamente, percebi que os calcanhares da moça se elevaram levemente, como se estivesse prestes a levitar em direção àquele rapaz alto, porém levemente curvado.

Afinal, estávamos em pleno passeio público, cercados pelo verde das árvores e pelo som alegre das crianças brincando ao longe. O aroma doce e picante das barracas de comida de rua flutuava no ar, misturando-se ao aroma inconfundível dos livros recém-abertos de uma livraria próxima. As cores vibrantes dos balões de vendedores ambulantes e as luzes das lojas do entorno adicionavam uma camada extra de magia à cena. Mas, caros amigos, alguém tinha que documentar tudo isso: respirei fundo, ergui o peito, segurei o bloquinho de anotações firmemente e me preparei para registrar cada detalhe daquele momento fascinante.

E nesse interlúdio de tempo, um silêncio descia sobre as calçadas. Um ambulante habilmente esculpia um abacaxi, a lâmina de sua faca dançando no ar como um malabarista experiente. Um taxista, absorto em seu mundo, sugava seu cigarro com um desdém descuidado, jogando casualmente as bitucas no chão (um hábito desprezível, devo acrescentar). Nas proximidades, um grupo de pardais e pombas realizava uma assembleia improvisada, debatendo fervorosamente sobre a divisão equitativa dos restos de pão espalhados pela calçada.

De repente, uma criança veio correndo, seus olhos curiosos se depararam com a cena diante dela. Quem sabe o que terá passado pela sua mente ao testemunhar a dança silenciosa entre os dois jovens: um em posição de sentido e o outro de deixar-se sentir. Quase me esqueci de mencionar as flores — muitas delas, em uma explosão de cores vibrantes que provocavam minha rinite.

Chega! Vamos ao que interessa. Creio que estou começando a absorver uma dose excessiva de paciência. Compartilhei sobre o tempo, sobre a natureza transitória de todas as coisas, movendo-se inexoravelmente para o seu fim inevitável, o beijo. Descrevi meu amigo e a moça, cujos olhos estavam enfeitiçados pelo amor, falei da atmosfera, do cenário urbano pulsante, do debate entre os pássaros sobre a posse de migalhas, do aroma do abacaxi recém-cortado misturado ao perfume das flores (uma pausa para um espirro), sobre a criança, que deveria estar na escola, e do taxista, com seu desdém pela limpeza pública. Agora, permita-me conduzi-lo de volta à cena. Agora? Sim, agora!

Resumindo: a praça estava imersa em um mar de cores e sons. O aroma doce e ácido do abacaxi se misturava ao cheiro intoxicante das flores, criando um perfume único que dançava no ar. Crianças corriam ao redor, seus gritos alegres preenchendo o ar enquanto os adultos passavam, envoltos em suas próprias vidas e histórias. E no centro disso tudo, dois jovens estavam prestes a ter um encontro que mudaria a maneira como eles percebiam o tempo e o amor.

Assim, nosso jovem protagonista, que optamos por nomear Nando, para facilitar a referência, fez uma inclinação calculada em direção à sua dama, com a precisão de uma linha perpendicular. Ele, creio eu, pretendia sussurrar algo ao ouvido dela. E vocês aí, pensando que ele avançaria para um beijo apaixonado imediatamente, não é? Mas, não, prezados leitores, este é o Nando, carinhosamente apelidado pelos amigos de “Cocão do Ferró”. Ele iniciaria com um punhado de palavras, um prelúdio verbal para eternizar o momento. Talvez um soneto, um verso alexandrino, um poema em linha reta, destacando sua própria imperfeição. Respirem fundo, caros leitores, e deixem o homem acender seus motores literários!

— Por favor…! — Agora vai, pensei, ajustando minha postura e a posição do meu caderninho.

— A senhorita poderia, por gentileza, me dizer o que é o tempo?”

O quê?! O vendedor ambulante, surpreso, se cortou, deixando seu abacaxi rolar pelo chão. O quê?! O taxista, atônito, cuspiu o cigarro e o pisou, esmagando-o contra o asfalto. E quanto aos pardais e pombos… eles continuaram a bicar os restos de pão, indiferentes à estranheza humana. E a criança… continuou a correr em seu próprio ritmo de inocência.

A jovem moça ainda esboçou um olhar para o relógio, mas depois franziu a testa, cerrou os dentes e suspirou, desiludida e sem paixão pelos homens e pela vida. Embora vestisse o uniforme do Colégio Santo Agostinho, ela se rendeu à resignação corpórea: creio que pensou ser tarde demais e decidiu seguir seu caminho em direção à maturidade, deixando a juventude para trás, sozinha.

Sim, prezado leitor, a princesa, em sua expectativa idílica, continuou adormecida. Ela almejava pelo príncipe montado num majestoso cavalo branco, mas tudo o que a realidade lhe trouxe foi o cavalo, que lhe fez uma pergunta filosófica, algo que nem ela nem qualquer pessoa que já considerou o tempo como uma fonte de incerteza e angústia, poderiam imaginar. Olhei para ela com uma pitada de compaixão no olhar: custava tanto assim se aprofundar nos contos dos Irmãos Grimm? — pensei, enquanto testemunhava sua existência minguar, como uma lenta desaceleração do viver.

Lá estava o meu amigo, deslocado, como uma nota dissonante em meio à sinfonia do movimento público. Com um sentimento de pesar, informei-o sobre a necessidade de recomeçar do ponto inicial. Mostrei-lhe o meu bloquinho de notas, onde eu havia anotado uma versão Agostiniana da afirmação socrática “só sei que nada sei” sobre o tempo:

“O que é, por conseguinte, o tempo? Se ninguém me pergunta, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei…” (Santo Agostinho, 1987, p.218).

Lá estava ele, um pensamento complexo e intrigante, uma lembrança de que, por mais que acreditemos conhecer o tempo, a realidade é que ele continua sendo um enigma, escapando à nossa compreensão quando tentamos explicá-lo.

Estávamos ansiando por desvendar o que é o tempo, ou ao mínimo, discernir se já estávamos demasiado tardios para assimilar. Fizemos uma parada em um quiosque, onde eu pedi uma garrafa de água e ele, a hora. Nando, com sua inquietação palpável, lançou o olhar para o horizonte, por cima dos veículos, por entre os prédios monolíticos, na esperança de captar vestígios da jovem que agora caminhava rumo ao incerto futuro. Então, num tom pensativo, ele comentou:

— Moça bonita, né? Um pouco estranha, mas ainda assim, bonita.

E como um castelo de cartas frente a um sopro, o tempo se esvaiu (como tudo tende a se esvair) após um simples comentário rememorando o passado. À medida que a frase ecoava, as palavras pendiam no ar como se fossem um fio de prata tecido pelo próprio Cronos, unindo nosso presente a um passado que, embora recente, já começava a desvanecer na penumbra do esquecimento.

Ao redor, o quiosque estava repleto de vida. Podia-se ouvir o barulho distante dos carros, o farfalhar das folhas ao vento, o canto dos pássaros encarregados de preencher os vazios com melodias. E o aroma, ah, o aroma… uma mistura complexa de flores próximas, de cheiro úmido de terra recém-regada e do doce perfume do café fresco, recém coado, exalando do quiosque. Uma paleta de cores pintava a cena, dos tons pastéis das flores até o brilho metálico dos carros que passavam, todos se fundindo em um quadro vívido e dinâmico de um dia qualquer na cidade.

Eber Urzeda dos Santos

Homem cortês, mulher triste

Coleção: Trevas do Eu.

Instagram: @urzedacontos

“Esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência”.

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Contos de Urzeda – O diário de Isabel: solidão e solitude

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