Novas Cartas a Aline

“Em ‘Novas Cartas a Aline’, mergulhamos na mente de uma mulher que, ao receber uma carta enigmática, é levada a questionar sua identidade e revisitar o passado. O conto explora, com uma dose de suspense psicológico, as complexas escolhas que moldam nossas vidas e a eterna busca por autoconhecimento. Este é o segundo conto da trilogia “Cartas a Aline”.

Prepare-se para uma narrativa intensa, onde cada palavra é um convite à reflexão e cada página, um novo encontro com os mistérios da mente humana. Boa leitura!”

Novas Cartas a Aline - Contos de Urzeda
Novas Cartas a Aline – Contos de Urzeda

Contos de Urzeda apresenta: Novas Cartas a Aline, por Eber Urzeda dos Santos

“Quem é você?”

Essas eram as únicas palavras escritas no papel de carta. O papel, timbrado com imagens pontiagudas e amarelas, lembrava o contorno de um girassol. No centro, onde deveria haver um disco de pequenas flores unidas, havia apenas essas três palavras, seguidas de um ponto de interrogação, todas rabiscadas com uma canetinha marrom. Aline leu a frase sem ceder ao espanto, mas sentiu o desconforto da dúvida se instalar. Recuou, estirou os braços e buscou o remetente, mas encontrou apenas um mistério intrigante que a remetia ao passado.

Escrever cartas para si mesma fora sua terapia íntima na adolescência — a única forma de apaziguar seus sentimentos e se autoconhecer. Mas agora, adulta, casada e mãe, mal se lembrava daquele ato desesperado da juventude. Resgatar a terapia das cartas não lhe passava pela mente, pelo menos não consciente. Porém, uma nova carta, como as de outrora, endereçada a Aline, sem remetente ou letras familiares, a provocou. Era uma indagação que admitia respostas variadas, mas nenhuma parecia confiável. Sentiu um desconforto profundo por não saber a resposta. Pensou por um momento, mordeu os lábios e perguntou a si mesma:

— Quem sou eu?

Embora se sentisse amada, Aline não se iludia com sua tristeza. Incomodava-se profundamente com os “happy hours” das sextas-feiras. Via pessoas mortas por dentro, dissimulando felicidade durante aquela única hora supostamente feliz de suas vidas: a celebração do fim do tédio semanal. Mal sabiam elas que, ao cair o pano do grande palco da vida, ao se aproximarem da despedida, após a representação narcísica e ilusória, cairiam de joelhos, em trajes de luto, diante do fim de semana, apaixonadas pela dor da segunda-feira imposta pelas promessas tristes do domingo à tarde. “Pura poesia ácida,” pensava ela, frequentemente acusada de ser uma pessoa dark.

— Quem sou eu? — perguntava-se, tentando, sem sucesso, olhar para dentro de si.

Sua trajetória de vida era admirável: Aline, em meio a uma família forte e um mundo destrutivo, fez-se mulher. Escreveu muitas cartas de amor para si mesma, de próprio punho e sangue.

— De todas essas memórias, do que mais sinto saudades? — perguntava a si mesma, e respondia: — Sinto saudades de escrever sobre as coisas que me afetam, de ler em voz alta os sentimentos da jovem que não sabia ser amada, de ouvir a única pessoa capaz de expressar, ainda que de forma desacertada, os porquês dessa pessoa dark e, claro, de ler poesias enquanto todos dormem! É isso, sinto saudades das poesias, da menina que esperava o carteiro e do menino mais feio da escola, transformado pelos meus anseios poéticos no mais belo. Sim, o mais belo e romântico, embora seu rosto, por descuido do tempo e do meu eu poético, tenha se apagado.

***

— Ei, moço! Posso lhe perguntar algo?

Essa não foi a primeira vez que a vi, mas a primeira em que a notei. Estávamos sozinhos na rua. Frente à rotatória, girávamos. Aline me olhava com o desconforto de não saber se lhe sobrava ou faltava tempo. Eu a olhava com o desconforto de não saber a hora exata. Nesse instante, a calma e a pressa desvaneceram. No ar, ficaram apenas resquícios da dúvida: seria a impossibilidade de voltar no tempo um sinal de que só existe vida no instante presente? Então, olhamo-nos pela primeira vez como amantes do tempo presente, maravilhados com a descoberta do outro. Eu a olhei como parte de mim e respondi-lhe:

— Claro! Pergunte-me! Por favor, pergunte-me!

Ela sorriu:

— Quem sou eu?

— Gosto de perguntas simples! — respondi com a ironia dos namorados, para quebrar o gelo das palavras e do momento.

Aline repetiu o sorriso e segurou minha mão. Ela se aproximou o suficiente para que eu pudesse ver, como de fato vi, milhares de palavras embaralhadas em seus olhos. Cada palavra, em movimentos circulares, parecia buscar seu par ideal, como se tentasse formar mais um casal para compor a métrica perfeita. Havia a ilusão talvez de um universo textual comparado ao cosmos aristotélico — finito e bem-ordenado. No entanto, as piscadelas daquela mulher misteriosa voltavam a embaralhar as palavras, transformando os encontros desejados em desencontros melancólicos. Dessa forma, a leitura do caos em seus olhos não permitiu nenhuma interpretação plausível de si.

Depois de fascinado pela tentativa de ler e reler seus olhos, fui hipnotizado pelos cachos de seus cabelos. Eram um emaranhado de tons avermelhados, como folhas de outono. Seus lábios, também vermelhos, contrastavam com o brilho de um piercing prateado em seu lábio inferior. Suas unhas esmaltadas reluziam na escuridão como cinco pontas refletindo uma estrela solitária. Seus dedos longos ainda sustentavam o peso de dez anéis e uma taça de vinho tinto, um Merlot, cujo aroma intenso e convidativo acentuava o perfume daquela mulher misteriosa. Depois de passar pela fase visual e olfativa, desejei desfrutar da companhia da mulher vermelha-fogo, que rodopiava com sua taça de vinho pela rotatória vazia.

— Se você realmente quer saber quem sou, diga-me o que pensa! — provoquei-a, como fazem os filósofos, amantes do saber e da dúvida.

Aline fixou seu olhar na taça de vinho. O roxo intenso do líquido à pouca luz trouxe de volta à sua memória as angústias da adolescência, época em que as dúvidas reinavam e não havia certezas, tampouco esperança. Ela girou a taça devagar, em sentido anti-horário, como se quisesse resgatar a mocinha do colégio. Ao desprender-se os aromas de cerejas e framboesas, sentiu-se tentada a banhar a boca com a textura macia do Merlot. Fechando os olhos, começou a brincar de pressionar a língua contra o céu da boca, numa tentativa de adivinhar o tempo de maturação do vinho apenas pela sensação de adstringência e secura dos taninos. Ao abrir os olhos e retornar da longa viagem ao passado, feita em seu cavalo tinto de álcool, contou-me sobre si:

— O que menos importa sobre mim é meu nome; não fui eu que o escolhi. Aliás, essa é uma das poucas escolhas atribuídas ao outro das quais não podemos ser julgados por má-fé. O que importa dizer sobre mim é que não aprendi a lidar com a ideia de que somos finitos. Lidar com a singularidade da existência me tira o sono. Creio que por isso tenho a mania de encher meu tempo de gente e esvaziá-lo de mim. Eu nunca estou em primeiro plano; eu mesma me deixo para depois. Às vezes, não me suporto.

— A liberdade de deliberar a própria vida é a razão de suas angústias? — perguntei, percebendo uma pausa dramática em seu discurso, como meio de camuflar seus medos, sonhos e desejos que brotavam do seu íntimo. Depois de um longo silêncio, ela tomou mais um gole de vinho e continuou:

— Liberdade… ah, a liberdade! Desde que tive a consciência da possibilidade de escolhas, me vi obrigada a ser livre. Percebi que cada um de nós é responsável pelas próprias escolhas, porque elas nos moldam e ficam marcadas no curso de nossa existência. E, apesar de não controlarmos a maioria das variáveis, nos tornamos o resultado delas. Deste modo, não nascemos destinados a nada; vamos nos moldando a partir de nossas decisões, mas sempre influenciados pelo ambiente. Acreditei, e ainda acredito, nisso. Mas a liberdade tem um preço: a angústia. Porque ela me mostra quem realmente sou, ainda que só para mim ou para minha consciência. Não há nada mais angustiante que ter de escolher entre o vermelho e o negro, entre o perigo e a escuridão. Por isso me escondo nos vinhos, nos outros e no trabalho.

Depois de outra pausa dramática e do último gole de vinho, Aline agachou-se, deitou a taça vazia no chão e a cobriu com um lenço, como se cobrisse um filho na cama. Após o gesto maternal, ela me olhou e me abraçou. Sentindo o calor de suas lágrimas aquecer meu coração, disse-lhe:

— Esqueça!

Ela me encarou e respondeu:

— Não posso. Esquecer é uma ilusão, quase tão enganosa quanto se embriagar. A carta recebida hoje me fez lembrar a menina de dezessete anos. Aquela menina não sabia o que era o amor. Ela desejava saber, aprendeu e compartilhou comigo. Mas eu, num ato de covardia, a abandonei. Como se pode abandonar uma menina cheia de sonhos? Como se pode descobrir a experiência de saber-se amada e esquecer?

Esquecer é dissolver tudo aquilo que aprendi, é deixar que os outros me definam. É o que fiz depois de me abandonar à sorte das escolhas do mundo. É isso! Agora me lembro quem escreveu esta carta: a pergunta não é quem sou, mas o que me tornei. Sim, quem a escreveu foi a menina-Aline, endereçada à Aline-mulher. Minha nossa! Como minha letra mudou!

Agora chega! É hora de resgatar a menina que se sabia amada, porque ela aprendeu a amar sem medo: a amar à primeira vista o encontro com o mundo, como se deve amar a cada novo reencontro consigo mesma. É isso, agora sei quem sou: sou a possibilidade de escolhas e o resultado delas. E embora o resultado não seja definitivo, minha vida recomeça agora. Sempre há um novo começo enquanto há vida.

Dito isso, Aline deixou o cenário da rotatória vazia. Seus pensamentos não giravam mais. Deixou-me sobre a mesa, manchado de lágrimas e tinta marrom, e escreveu novas cartas a Aline. Logo, sentou-se na posição de lótus e pôs-se a meditar. Mesmo eu, um papel de carta inanimado, agora sei, pelas palavras dela, como se sente alguém que, por si só, se sente amado.

Eber Urzeda dos Santos
Novas Cartas a Aline

Coleção: Trevas do Eu

Roßtal – Alemanha – 30/07/2021

Instagram: @urzedacontos

“Esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência”.

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