O Horror de Hidrolândia

Mergulhe no suspense de “O Horror de Hidrolândia”, um conto que te levará às profundezas de uma cidade envolta em mistérios e nevoeiros sinistros. Acompanhe a história de uma escola, onde o sobrenatural encontra os terrores da infância, criando uma atmosfera de medo e reflexão sobre a saúde mental. Prepare-se para desvendar os segredos e enfrentar os “Cadáveres de Argila” neste conto de arrepiar. Boa leitura!

O horror de Hidrolândia - contos de Urzeda
O horror de Hidrolândia – contos de Urzeda

O Horror de Hidrolândia: Os cadáveres de argila

Fui covarde ao fugir da cidade, confesso, uma covardia que reverbera nas profundezas da minha alma. Mas, após confrontar o semblante do meu próprio medo em cada recanto obscuro dos meus esconderijos, resolvi abandonar a hesitação. As sombras pareciam murmurar, os ventos frios soltavam gemidos lúgubres, e um aroma sufocante de um terror ancestral se entrelaçava com a névoa que envolvia minha consciência.

Recorri, então, à coragem inerente aos escritores, tão palpável quanto o papel áspero sob meus dedos trêmulos, para capturar minhas inquietudes em linhas aflitas, na tentativa de me libertar das angústias das noites nebulosas e dos sonhos perturbados. Mais que isso, almejo que meu relato, tão verossímil quanto o luar pálido que agora brilha através da minha janela, sirva de advertência aos meus queridos conterrâneos, a quem imploro, com um coração pesado: vigiem as almas desavisadas que buscam a purificação ilusória de seus corpos nas águas turvas e traiçoeiras do Ribeirão das Grimpas.

Devo mencionar algumas peculiaridades de minha meninice, detalhes cruciais sem os quais o contexto poderia se embrenhar em confusas interpretações. Não sei se a história que estou prestes a contar tem ligação direta com os demônios ocultos da minha infância ou com as noites de insônia que assombraram meus dez primeiros anos, nas quais a escuridão parecia mais viva e os ruídos noturnos compunham uma sinfonia do terror. Mas creio, pois ainda dói, que esta passagem infeliz seja resultado de uma violência doméstica fria e calculada, infligida como um ato intimidador da arte da experimentação infantil.

Era minha última semana de aula na quarta série. Eu estava prestes a me livrar daquele lugar estranho e ameaçador. A escola, com suas paredes em tons de branco e azul celeste, limpa meticulosamente com panos embebidos em água de jasmim, sucumbia diariamente, ao melancólico toque do último sinal, à sombra sinistra e à sujeira de um misterioso e denso nevoeiro que parecia emanar das entranhas da terra. Enquanto isso, alunos e professores, com olhos arregalados e passos vacilantes, lançavam-se numa fuga desenfreada para abandonar o recinto, como se escapassem de um pesadelo que se aproximava com a noite artificial. A iluminação débil dos corredores criava um jogo de sombras, onde cada sussurro parecia se materializar em algo mais terrível, algo oculto nos recantos mais obscuros da imaginação.

É de se frisar que o nevoeiro a que me refiro não era composto por mero vapor aquoso, como nas neblinas comuns, ou um leve e úmido estorvo à visão. Não, isso seria minimizar o fenômeno sobrenatural que assolava o Grupo de cima — como era carinhosamente chamada a escola primária. Este nevoeiro estava impregnado de partículas de uma argila preta e viscosa, idêntica à encontrada às margens do riacho que serpenteava a cidade. Ao surgir, parecia como se a própria noite estendesse seus dedos nebulosos, envolvendo tudo e todos em um abraço de breu noturno. Os telhados vermelhos, antes tão vibrantes, as paredes claras, ainda úmidas da limpeza matinal, e o pátio de cimento queimado, com suas manchas vermelhas e amarelas, eram tingidos pela cor escura dos brejos hidrolandenses.

Agora, permita-me desviar sua atenção para fora dos muros da escola, onde uma cena peculiar se desenrolava, refletindo a normalidade desconcertante desses tempos estranhos. Os raios de sol acompanhavam os passos lentos e pesarosos dos passageiros recém-chegados da capital. Os trabalhadores da pequena cidade de Hidrolândia desciam do ônibus cabisbaixos e apreensivos, com suas faces marcadas pela fadiga e pelo temor. Ninguém — repito, ninguém — ousava lançar um olhar sequer para os portões da escola, como se o simples ato de observar pudesse despertar uma maldição ou irritar ainda mais o ser que corrompia a paz. Os pais dos alunos apenas se olhavam de soslaio. Em suas expressões, era possível discernir a fé, ainda que estremecida, na esperança de um mesmo pensamento silencioso: “Espero que as crianças tenham sido rápidas o bastante.”

A tensão era palpável, quase se podia sentir o ar carregado de uma energia perturbadora. O cheiro da argila misturado com o aroma distante de flores silvestres criava uma fragrância peculiarmente desconfortante. A luz do sol, embora presente, parecia lutar contra uma resistência invisível, lançando sombras longas e deformadas que dançavam pelos muros da escola. Toda essa atmosfera convergia para um foco inquietante: a escola, um edifício aparentemente comum, mas impregnado de um terror tão profundo e inexplicável que o simples pensamento de sua presença enviava calafrios pela espinha de qualquer morador sensato da cidade.

O fenômeno do nevoeiro, junto com as lendas etéreas e inquietantes acerca do ribeirão, não tardou a despertar o interesse de vários meios de comunicação de Goiânia. Jornalistas, sedentos por uma história intrigante e obscura, chegaram em bandos, suas câmeras e gravadores em punho, olhares aguçados pela curiosidade. No entanto, por mais que investigassem, nenhum deles jamais conseguiu extrair uma palavra, nem dos profissionais que trabalhavam na escola, nem dos demais moradores da cidade. As bocas se fechavam, os olhos desviavam, e um silêncio sepulcral tomava conta de qualquer tentativa de conversa.

Sem fatos concretos ou testemunhos confiáveis, o que permanece sobre os mistérios de Hidrolândia são apenas lendas distorcidas, fragmentos de histórias sussurradas em cantos escuros, contadas aqui e acolá pelos bêbados e pelos loucos da cidade. São murmúrios carregados de temor, sombras de uma verdade que parece escapar como a neblina entre os dedos.

Como narrador desta história, não levantarei hipóteses sobre a origem sinistra do nevoeiro, nem ousarei explorar o sentimento torturante de culpa que possa assombrar os pais dos alunos. Tampouco me delongarei sobre o negativismo soturno do povo. Para os cidadãos da localidade, os homens e mulheres que viviam suas vidas sob a constante sombra dessas lendas, não havia espaço para acreditar em nevoeiros amaldiçoados ou em contos fantasmagóricos. “Afinal de contas”, diziam eles com um ar de desdém e uma pitada de defensiva superstição, “essa gente da capital deve estar de olho é na argila preta do nosso ribeirão”.

Ah, mas preciso ressaltar um detalhe, uma característica que persiste em minha memória. Era a forma como as pessoas falavam, os olhares que lançavam ao mencionar o ribeirão, a argila, o nevoeiro… Havia algo mais, algo que ultrapassava a mera desconfiança ou o cinismo. Manifestava-se num brilho fugaz, uma sombra passageira que denunciava um terror mais profundo, um segredo sepultado e escondido, algo que nem mesmo eles ousavam confessar. É este terror encoberto, esta inquietante sensação de que algo está profundamente errado, que me impele a ir além, a sondar as profundezas sombrias desta história, a revelar o que jaz oculto no coração enegrecido de Hidrolândia.

Cresci à sombra de histórias aterradoras e encantos folclóricos, lendas de pessoas transformadas em estátuas de argila pelas propriedades místicas das águas do riacho. Mas permita-me postergar o relato dessas narrativas até um momento mais oportuno. Farei isso não por negligência, mas em respeito à cronologia dos eventos, uma fidelidade que me obriga a mergulhar nas águas turvas da memória e trazer à luz o misterioso caso dos desaparecimentos na região do Poço Velho.

O conhecimento desses fatos chegou a mim através de relatos esparsos, murmurados pelo meu velho avô em momentos de inconsciência. Era um homem cansado e dobrado pelo peso dos anos, que, ocasionalmente, murmurava histórias de terror enquanto cochilava em sua cadeira de balanço. Podia vê-lo após o almoço, mascando lascas de seu fumo de rolo, os olhos entreabertos e o rosto profundamente sereno, enquanto o aroma do tabaco permeava o ar. Então, subitamente, ele cuspiria o tabaco na parede, uma mancha marrom que se somaria às demais, resquícios perpétuos de seus pensamentos silenciosos. Em sua voz rouca e cansada, as palavras se entrelaçavam com o estalar da madeira e o balanço suave da cadeira, um canto que parecia invocar os próprios espectros de Hidrolândia.

***

Os momentos que precediam o sinal da última aula eram sempre preenchidos por uma tensão palpável. Minutos antes, os alunos já haviam guardado seus materiais; lápis e cadernos silenciados, mochilas fechadas com um cuidado reverente. Como era de praxe, esperávamos em alerta, cada um de nós absorto em pensamentos próprios, olhos fixos à frente, corações pulsando em uníssono com a aproximação do desconhecido.

A professora estava sentada de forma inquieta, uma postura que delatava sua ansiedade. Um pé apoiava-se firmemente no chão, enquanto o outro tocava apenas com a ponta, os dedos espalhados, tensos como garras. Seus olhos vasculhavam a sala, lábios apertados, como se buscasse a posição ideal para se erguer rápida e assertivamente. Nós, seus alunos, permanecíamos angustiados em silêncio, sem nos atrevermos a olhar pelas grandes janelas laterais, onde a promessa do nevoeiro nos aguardava.

A sala estava imersa em um silêncio tão profundo que parecia quase sólido. Nada se ouvia, nem mesmo as moscas, que desapareciam misteriosamente ao entardecer, como se intuíssem que algo estava terrivelmente errado. A iluminação difusa lançava sombras longas e inquietantes, criando um cenário digno de pesadelo. O ar estava pesado, impregnado com o cheiro de giz, a fragrância da madeira, e algo mais, algo indefinível que instigava um medo primitivo e inominável. Era o momento que todos nós temíamos e aguardávamos, quando o horror de Hidrolândia se revelaria novamente.

Entre os alunos, destacava-se uma menina que parecia imune à ansiedade que nos afligia. Meus amigos e eu a considerávamos a mais bela da cidade, mas sua beleza era quase perigosa. Seus olhos castanhos, distantes e enigmáticos, pareciam ocultar um oceano de segredos. Algo neles me fascinava, um brilho misterioso que me fazia pensar que ela sabia algo além de nossa compreensão.

Não me lembro das outras garotas; seus atributos eram banais, sem o magnetismo cruel que ela possuía. Eram como figuras desbotadas, perdidas no pano de fundo, enquanto ela brilhava, destacada e inacessível. Certa vez, lembrei-me de um sermão do Padre sobre pessoas mornas que Deus rejeitava, e pensei nisso ao tentar recordar das meninas mornas da classe.

Maria — permita-me chamá-la assim, já que seu nome autêntico carrega peso e significado, provocando tremores em mim só de cogitar sua menção. Por isso, escolho não o invocar levianamente, por respeito tanto às alturas quanto às profundezas.

O corredor estava repleto de ecos e sussurros, passos apressados e agitação contida antes do toque do sino. Algumas sombras, sem seus corpos, pareciam dançar nas paredes, como se estivessem vivas, inquietas. O cheiro dos produtos de limpeza misturava-se com o suor nervoso dos alunos, gerando uma atmosfera de expectativa.

Então, lá estava ela, tomando moedas das mãos de um menino apaixonado, os olhos dele cheios de adoração e perplexidade, a voz embargada pelo choro. Ela se virou, deixando-o a choramingar no corredor, e o som de seu choro perdeu-se na cacofonia do corredor.

Ela veio em minha direção, os cabelos soltos balançando suavemente, os olhos cravados nos meus, uma delicadeza feroz em seu olhar. Seus dedos frios e firmes tocaram minha mão.

— Venha comigo e não faça perguntas! — disse a mocinha mandona, a voz cheia de autoridade, mas também de algo mais, algo que eu não conseguia identificar.

Depois de quatro anos estudando na mesma sala, sem trocar uma palavra sequer com ela, achei tudo aquilo muito estranho. Um calafrio sutil percorreu a minha espinha enquanto tentava entender o que estava acontecendo. Porém, obediente à beleza que emanava dela como um feitiço, e compelido por uma curiosidade que me corroía, acompanhei-a.

Mas não antes de contemplar a triste cena do garoto traído, imóvel, reclinado sobre a porta fechada da sala dos professores, observado entre gargalhadas de alunos que desconheciam — ou fingiam desconhecer — as armadilhas do amor. A atmosfera era carregada com uma tensão quase tangível, um sentimento coletivo de escárnio e crueldade que se insinuava nos risos e nos olhares. De certa forma, os alunos daquela época sombria, diferentes dos de hoje, preferiam desfrutar da leveza do humor ácido a sentir o peso da compaixão.

Corremos em direção ao portão e saltamos para fora, com o coração batendo no ritmo frenético do medo. Caímos sobre um canteiro de flores que dividia a avenida, os espinhos e as pétalas quebradas misturando-se em uma massa de cores e odores. Preocupado com o aluno que ficou no corredor, olhei apreensivo para a entrada da escola. A luz da tarde, que antes banhava o pátio com uma claridade dourada, foi aos poucos engolida pelo nevoeiro, formado Deus sabe onde, fazendo com que a escola, apesar da tarde ensolarada, mergulhasse na escuridão da noite artificial.

A cada passo nosso, o som de nossos pés contra o chão parecia ecoar e se perder na névoa, como se o próprio mundo estivesse prendendo a respiração, à espera de algo terrível.

Alguns minutos depois, Maria e eu tirávamos os espinhos e os carrapichos da roupa, o cheiro das flores amassadas ainda em nossas narinas, quando um grito de horror rasgou o ar, gelando o meu sangue. O contraste entre a tarde ensolarada da cidade e a treva noturna do interior da escola apresentou-nos uma cena aterradora: um espectro sombrio, formado por movimentos de sombras escuras a contornar algo parecido à silhueta de um garoto, saia lentamente pelo portão.

A rua, que antes parecia comum e inofensiva, tornou-se o palco de um pesadelo. A silhueta espectral parecia flutuar, um vulto formado de trevas e medo, contorcendo-se em um baile macabro.

Quando o fantasma pisou na calçada, as sombras escuras recuaram e à luz do sol surgiu a figura de um menino translúcido, de pele pálida e olhos vazios e perdidos. Sua aparência era de algo que havia sido humano, mas que agora estava irrevogavelmente alterado. A imagem daquele menino assombrado permaneceu comigo por muito tempo, uma lembrança que me perseguia nas horas mais sombrias da noite, uma prova de que o mundo escondia horrores que eu apenas começara a compreender.

— Deve ser só uma confusão visual! — pensei, e esfreguei os olhos com força, como se quisesse apagar a imagem perturbadora da minha mente. Mas a visão não desapareceu. Ao abri-los, o garoto cristalino continuava lá, cada detalhe de suas feições etéreas mais nítido e chocante. Suas feições lembraram-me o aluno apaixonado do corredor, mas sua pele, antes morena, seus cabelos, e até seus olhos haviam perdido toda a pigmentação. Parecia uma alma que acabara de se livrar de seu cadáver, uma aparência impossível que desafiava a lógica.

Aquele ser de formas fantasmagóricas, então, deu alguns passos em nossa direção. Seus movimentos eram rígidos e mecânicos, e encarou Maria com um olhar maligno. Notei que a respiração e os músculos faciais dele davam a impressão de que ele era a própria imagem da ira. A atmosfera parecia carregada com uma energia do mal, uma tensão que fazia o ar ao meu redor ficar denso e pesado.

Maria o olhou com naturalidade e com um leve sorriso cínico. Esse gesto inexplicável me fez estremecer, e voltei a esfregar os olhos, esperando que a cena fosse alterada. Mas o que eu vi em seguida jamais fora contado em histórias de terror: depois de maldizer Maria com palavras que não ouso repetir, ele olhou para o sol e elevou os braços ao céu.

Nesse instante, sua pele e seus olhos exalaram uma fumaça escura que, aos poucos, tornou-se nimbosa como as nuvens negras a anunciar tempestades. O cheiro de queimado impregnou o ar, ácido e nauseante. Quando todo o seu corpo se transformou em uma espécie de pó, opaco como argila ressecada, veio uma leva de névoa escura, porém com luzes intermitentes como pequenos relâmpagos em seu interior, em movimentos circulares como um redemoinho, e envolveu todas as partículas do fantasmagórico garoto, levando-o de volta para dentro da escola, agora tomada pela escuridão.

Essa visão, associada ao som apavorante, muito parecido aos sons emitidos pelos corvos em filmes de terror, criou um cenário de pesadelo que minha mente lutava para processar. Senti o mundo ao meu redor desmoronar, as certezas e as leis da realidade dando lugar ao inexplicável e ao aterrorizante.

Ainda sem reação ou tempo para absorver tudo o que acontecera, senti uma mão fria agarrar-me por trás. Naquele instante, descobri que o medo intenso provoca ataques de arrepios congelantes, que o pânico pode ser uma força física que comprime o peito e sufoca a voz. Agonizei-me, ao sentir um grito obstruir minhas vias respiratórias.

Por sorte — ou pelas circunstâncias, azar —, era Maria. Sua expressão era de calma, mas seus olhos brilhavam com uma luz estranha e inquietante. Ela puxou-me pelo braço, e corremos sem olhar para trás, o som dos nossos passos desesperados misturando-se aos ecos distantes dos gritos e do vento, enquanto o mundo ao nosso redor parecia se desfazer em sombras e incertezas.

Descemos a Avenida Antônio Mendonça, uma via de paralelepípedos antigos e desgastados, em direção ao Ribeirão das Grimpas. O sol estava se pondo, e sua luz alaranjada criava sombras alongadas que pareciam nos perseguir. No caminho, paramos em uma mercearia à esquerda, um lugar desbotado, com a pintura descascando e um cheiro de mofo misturado ao odor de frutas maduras.

Fiquei fora enquanto Maria entrou para gastar as moedas, minha mente ainda atolada no terror e no mistério do que havíamos presenciado. Depois de alguns minutos, ela saiu portando uma sacolinha. Não me importou o conteúdo, tudo parecia estranho demais naquele dia, eu mal sabia por que a acompanhava. Ela aproximou-se sorridente, agarrou-se em minha cintura, e continuamos pela rua vazia.

Ela caminhava como se fosse um dia corriqueiro qualquer, sua expressão iluminada, seus olhos brilhando. Eu, aterrorizado, tentava organizar meus pensamentos para entender o que havia acontecido na escola. Respirei fundo, senti suas mãos me segurarem com mais força que carinho, como um aperto possessivo e determinado.

— Maria, o que aconteceu com o…? — comecei, minha voz tremendo, mas ela interrompeu-me com um pequeno empurrão e um beliscão, quase carinhoso, no braço.

— Fique calmo e calado, você já saberá de tudo! — disse-me ela, evitando olhar-me nos olhos, sua voz suave mas firme.

Chegamos à Alameda das Grimpas e viramos à esquerda, onde havia uma bica d’água e um poço abastecido pelo ribeirão. A noite aproximava-se com os seus ventos calmos e gelados, sussurrando através das árvores nuas e rastejando ao longo do caminho, como se quisesse nos cercar.

Ao chegar à beira da bica, ouvi coaxos e gorjeios vindos do poço e da margem contrária ao ribeirão, sons da noite que se misturavam a um coro distante e inquietante. Senti respingos de água fria molharem minhas pernas, um toque gélido que me fez estremecer. Olhei para baixo e acompanhei a queda d’água que batia com força no chão, para logo correr ladeira abaixo em direção ao Poço Velho, um lugar envolto em lendas e mistério.

Então, com muita naturalidade, Maria aproximou-se, beijou-me o rosto e, desta vez, olhando-me nos olhos, sua expressão séria e penetrante, disse-me baixinho:

— Venha, vamos terminar o que começamos! — sua voz era quase um sussurro, mas carregava uma determinação que me paralisou.

Não entendi ao certo o que realmente havíamos começado. Eu me sentia confuso como em uma espécie de transe, uma névoa havia se formado em minha mente, obscurecendo meu raciocínio, mas a segui, como se uma força invisível me compelisse a obedecer. Descemos a encosta e paramos à beira do poço. O som da água se misturava ao zumbido de insetos noturnos.

O Poço Velho é um lago como os de histórias de suspense, enigmático e ameaçador. Ele tinha uma enorme pedra à esquerda, coberta de musgos e líquens, a ocultar o túnel construído como alicerce para a ponte da BR-153. As águas, normalmente calmas do Ribeirão das Grimpas, formavam uma corredeira perigosa para os banhistas que se aventuravam a passar pelo túnel. A espuma branca da água batendo nas rochas parecia o grito silencioso do lugar, um aviso que poucos entendiam.

Desde que vi aquele túnel pela primeira vez, numa tarde quente e nublada, com o sol se escondendo atrás de nuvens pesadas, eu passei a evitar não só o Poço Velho como toda aquela região da cidade. O cheiro da umidade, a sensação de olhos invisíveis nos observando, tudo contribuía para uma atmosfera de temor que se infiltrava na alma.

Segundo contam, alguns aventureiros desapareceram na tentativa de cruzar o túnel do Poço Velho. As lendas dizem que gritos podiam ser ouvidos em noites de lua cheia, os ecos de almas perdidas em tormento. Aqueles que conseguiam chegar ao outro lado eram acometidos por uma doença rara e terrível: depois de sentirem seus corpos arderem feito carvão em brasa, eles viam suas peles ressecarem, tornarem-se ásperas como pedra. Além disso, os olhos deles recebiam um tom cinza escuro, como se a cor da vida tivesse sido sugada, e o brilho da insanidade tomasse seu lugar. Perdiam a razão pouco tempo depois e passavam a viver nas calçadas da escola, perambulando como sombras de si mesmos. Eram conhecidos como os Cadáveres de Argila, uma maldição viva, um lembrete constante do perigo do desconhecido.

E lá estávamos nós, à beira desse abismo misterioso. As palavras de Maria ainda ecoavam em minha mente quando percebi seus olhos fixos no túnel. Ela admirava a luz do luar refletindo um tom cinza na boca daquele caminho sombrio, como alimentando uma fome estranha e insaciável. Eu sentia o medo me consumindo, uma presença fria em minha espinha, mas também uma curiosidade mórbida, uma necessidade de entender o que nos esperava nas sombras daquela noite.

Ao descer a encosta rumo ao poço, sem me distrair dos passos de Maria, veio-me à mente os velhos a berrar como leões ferozes durante toda a noite no asilo do outro lado da cidade. Aqueles berros ecoavam pelas vielas escuras, misturando-se aos gritos de lamento dos Cadáveres de Argila. Era como uma sinfonia macabra que se repetia noite após noite, um lamento que me arrepiava até os ossos. Balancei a cabeça na tentativa de me livrar dos pensamentos ruins, mas eles se agarravam a mim, assombrando minha sanidade.

Logo, Maria fez um barulho ao desembrulhar algo que estava dentro da sacola, e isto me trouxe de volta à margem do poço. Ela havia comprado um pedaço de carne seca. Levei as mãos à boca e ao nariz na tentativa de livrar-me do odor nauseante daquela carne negra, coberta por uma camada de gordura amarelada e suja de sangue. A textura parecia errada, a aparência era de algo que pertencia a um mundo distorcido, algo profano.

Ela pegou a carne, partiu-a em pequenos pedaços com unhas que mais pareciam garras, e os atirou pouco a pouco no poço. Da água surgiram algumas borbulhas, que iam aumentando a cada novo pedaço de carne lançado, até que todo o poço começou a fervilhar, como se estivesse vivo, reagindo àquela oferenda estranha.

A noite estava silenciosa, e o barulho das borbulhas parecia aumentar, cada vez mais alto, até preencher todo o ambiente. Maria, em seguida, agarrou-me com uma força desumana e arrastou-me para a água. Senti os músculos dela tensos, a determinação em seus olhos era assustadora. Caí entre as borbulhas e afundei-me em seguida.

Senti fortes arrepios causados pela água gelada, que parecia ter garras invisíveis me puxando para baixo. Tentei nadar, mas não conseguia mover os braços para voltar à superfície. Ela me segurava com uma ferocidade que nunca vi antes, fazendo movimentos bruscos e implacáveis.

Seu empenho em levar-me à parte mais funda do poço parecia algo monstruoso, uma obsessão que se transformara em loucura. Eu lutava, mas a cada movimento meu corpo ficava mais pesado, a escuridão me envolvia, e o último pensamento que me veio à mente foi o rosto de Maria, transformado, olhos brilhando com uma luz sinistra, o sorriso torcido, e o segredo que ela escondia, prestes a ser revelado nas profundezas daquele poço amaldiçoado.

A resistência dela era sobrenatural, como se algo além de sua força física estivesse me segurando. Depois de uma luta árdua, na qual cada segundo parecia uma eternidade, consegui soltar os meus braços e a empurrei para baixo com a ajuda dos pés. Cheguei à superfície e tomei ar em grandes e dolorosas inspirações, os pulmões ardendo por oxigênio.

A lua agora estava escondida por nuvens escuras, e a escuridão ao redor do poço era mais densa. O fervilhar da água aumentou, ao ponto de provocar pequenas ondas, e eu sabia, de alguma forma terrível, que algo mais estava ali, algo antigo e maligno.

Nadei rápido e consegui segurar-me em uma pedra escorregadia, quase no meio do poço. Subi um pouco, o corpo tremendo, e comecei a vomitar toda a água que havia tragado. A cada espasmo, uma nova onda de terror me atingia.

Ainda tentando me recuperar, senti o calor de algo parecido a uma garra quente, cheia de escamas, com unhas pontiagudas a agarrar-me a perna. Era uma sensação real, física, mas ao mesmo tempo irreal, como se viesse de um pesadelo.

O grito que dei ressoou pela noite, atravessando a floresta, reverberando nos morros distantes. Acreditem, ainda é comentado nos dias de hoje: “foi um grito de terror que fez soar o latido de todos os cães da região,” diziam e dizem os bêbados e os loucos da cidade.

Depois do grito, chutei aquilo que me agarrou, com uma força que não sabia possuir. Só então me virei e vi o rosto ensanguentado de Maria, os olhos injetados, os cabelos grudados no rosto, e algo em seu olhar que não era humano.

— Me solta, me solta! Você está louca, tá querendo me matar?! — gritei, a voz falhando, o terror me consumindo.

— Você já está morto, não se lembra? Sua alma ficou no corredor da escola. Você me pagou para dar fim à sua vida triste, seu corpo agora pertence às criaturas do Poço Velho. — disse Maria, a voz calma, como se estivesse explicando algo trivial, antes de cravar as suas unhas em minhas pernas.

As palavras, a dor aguda em minhas pernas, o olhar dela, tudo se combinou em uma realidade impossível, uma revelação que me atingiu com a força de um punhal. Eu estava preso em uma teia de terror, e algo muito pior do que eu poderia imaginar estava acontecendo. A realidade havia se fragmentado, e eu estava caindo em um abismo de insanidade e medo.

Atônito, os olhos se arregalando na escuridão enevoada da noite, reconheci pela primeira vez o rosto do menino apaixonado no corredor da escola: era eu. Era uma parte de mim, uma sombra do passado que eu me recusava a aceitar. Uma memória enterrada tão profundamente que havia se transformado em pesadelo.

Senti ânsias de vômito, meu estômago revirando em revolta, o coração se apertando como se fosse implodir. Cada batida era um trovão em meus ouvidos. Revi, como em um filme em câmera lenta, a cena em que minha alma se despedia com ira e desaparecia no nevoeiro da escola, perdida e abandonada.

Olhei para Maria e vi o seu rosto, de traços angelicais mas agora distorcidos, ensanguentados, perder aos poucos as suas feições de ódio para ganhar rasgos de arrependimento, culpa e compaixão. Era como se ela estivesse lutando contra algo dentro dela, algo terrível e controlador.

Então, dos seus olhos, brilhando sob o manto de trevas, rolaram algumas lágrimas que, mescladas ao sangue, correram por seu rosto até caírem na água, manchando-a com um vermelho mais profundo. Todo o poço voltou a se agitar com as suas lágrimas de sangue, como se a própria água estivesse reagindo à sua dor.

Em um momento suspenso, o tempo pareceu congelar, e Maria olhou para cima, seus olhos encontrando os meus, cheios de um entendimento trágico. Ela soltou minhas pernas e disse, com uma voz trêmula, mas determinada:

— Fuja rápido! Salve-se, recupere a sua alma!

Com essas palavras, como uma bênção e uma maldição, ela abriu os braços e deixou-se cair de costas nas águas borbulhantes pela última vez. Enquanto afundava, ela acenou, um sorriso triste e belo em seus lábios, fechou os olhos e se entregou às criaturas das profundezas, e seu corpo foi engolido pela escuridão.

O poço continuou a ferver por alguns minutos, a água agitada, como se estivesse em tumulto. Os sons da floresta tinham cessado, como se a natureza também estivesse assistindo a esse drama. Logo, tudo voltou a ficar calmo, e os sons de insetos e de animais noturnos, tão comuns mas agora tão estranhos, voltaram a dominar o local.

Eu me encontrei sozinho, molhado e tremendo, à margem do Poço Velho, a realidade e o pesadelo se misturando, deixando-me perdido em uma terra de sombras e confusão. Uma coisa era certa: algo dentro de mim havia mudado para sempre, e eu sabia que minha jornada estava apenas começando.

Esperei algum tempo, o coração ainda batendo com força em meu peito, e saltei da pedra, cada músculo do meu corpo tensionado com o medo do desconhecido. Caí na água, a sensação gelada me envolvendo como dedos de espectros, e nadei a braçadas desesperadas rumo à margem do poço. O cheiro de lodo e algo mais antigo e ameaçador enchia o ar, e podia ouvir os sussurros da floresta me observando.

Corri em direção à escola, os pés batendo contra o solo duro, a respiração rasgando a noite. Encontrei os portões trancados e os Cadáveres de Argila rastejando nas calçadas, suas formas torcidas e grotescas se movendo com uma estranha e aterrorizante graça. Pulei o muro, o metal frio em minhas mãos, e caminhei pelo nevoeiro com alguma dificuldade, a umidade tornando o caminho escorregadio.

Enquanto caminhava, notei que as minhas roupas, ainda molhadas, ganhavam uma textura lodosa e o brilho de raios elétricos como os do nevoeiro, uma mutação terrível que parecia refletir a corrupção de minha própria alma. Depois de me despir e atirar as roupas contra as trevas, encontrei minha alma translúcida estirada nos corredores, próxima à sala dos professores, uma visão tão surreal que me fez cambalear.

Ajoelhei-me, a luz fraca e pálida das lâmpadas pintando sombras na minha figura, e pedi perdão a mim mesmo, arrependido de querer abreviar minha própria existência, na tentativa de pôr um fim a uma dor insuportável, um buraco negro que ameaçava me consumir.

Maria nunca foi encontrada. Seu rosto, outrora belo e provocante, agora se misturava com os fantasmas em minha mente. Os Cadáveres de Argila, desde então, tomaram a cidade, seus movimentos tortos e sombrios se tornaram uma constante lembrança do terror que eu havia vivido.

Entre idas e vindas de clínicas psiquiátricas, havia completado dezesseis anos. Foi quando decidi deixar a minha terra natal para nunca mais voltar. Eu queria abandonar a voz de Maria e o grito do Poço Velho que ainda ressoavam em meus ouvidos.

Vivi por muitos anos percorrendo diversas localidades pelo país, logo fiz o mesmo por outros continentes, a fuga tornou-se uma parte inexorável de mim. Fugi da cidade, do poço e do nevoeiro, com a esperança de não ver minha vida acabar entre as más lembranças da escola e os monstros do Poço Velho.

Porém, descobri que o terror de Hidrolândia não era nada comparado ao horror de viver o tempo todo com o meu maior inimigo, eu!

Eber Urzeda dos Santos

Nuremberg – 17/10/2018

Coleção: Trevas do Eu

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“Esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência”.


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Leia também o conto: Cartas a Aline: Espelhos de Papel

Clique no link para ler: Análise Literária de Benny em “A Kombi e a Náusea”

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Contos de Urzeda - O horror de Hidrolândia
Contos de Urzeda –

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