O Jack do Eixão

Bem-vindo à página Contos de Urzeda! Se você já conhece meu trabalho, sabe que meus contos geralmente mergulham em temas mais sérios e existenciais, abordando as complexidades da vida e do ser humano. No entanto, todos precisamos de um respiro e, por isso, criei um espaço para crônicas que trazem um pouco mais de leveza e humor ao nosso cotidiano. As crônicas, como “O Jack do Eixão”, são uma forma de fugir dos temas mais pesados, proporcionando a você, leitor, momentos de diversão e distração dentro do universo literário. Afinal, a literatura também é feita para nos fazer sorrir.

O Jack do Eixão - Contos de Urzeda

O Jack do Eixão – Contos de Urzeda

Dedicado a Diego Medeiros

Lá vinha meu amigo, apertadinho no Eixão. Para quem não sabe, o Eixo Anhanguera é uma linha de ônibus que corta Goiânia de ponta a ponta, projetado para ser uma espécie de “metrô” sobre rodas. Mas o resultado é um espetáculo à parte — se alguém dissesse que foi desenhado por criaturas de outro planeta, ninguém duvidaria.

O veículo, cheio de charme duvidoso e cheiros variados, já havia acomodado meu amigo desde o terminal Padre Pelágio, onde ele trabalhava. Destino? Terminal da Praça da Bíblia. Só pelos nomes dos terminais, já dá pra imaginar que Goiânia ostenta uma certa espiritualidade católica. E realmente ostentava, até que uns protestos na Feira do Pequi — ou foi na Feira da Marreta? — deram espaço ao nosso Martinho Lutero do pé rachado, que lançou suas teses no verso de uma guia de depósito bancário. Revolução é isso, meus caros.

Meu amigo, sujeito simples, como qualquer um. Mentira! Se eu começar a descrever todas as qualidades dele, terei que transformar essa crônica num épico homérico. Então, para evitar exageros, digo apenas que ele era… um cara legal. Simples assim. Lá estava ele, distraído, lendo as instruções no saco de ração para coelhos que levava debaixo do braço. Sim, coelhos. Aqueles bichinhos peludos que parecem ter sido desenhados para comer e procriar. E, ao que tudo indica, meu amigo entendia bem dessas duas atividades, pelo menos quando se tratava dos coelhinhos. Mas vamos focar na história.

Antes de terminar a literatura “coelhística”, avistou o terminal da Praça da Bíblia e já preparou o ritual diário: dar aquela olhadinha básica para a fila dos passageiros de Hidrolândia, uma cidade a uns 36 km da capital. Para ele, aquele momento era crucial, quase místico. Nosso herói (no sentido de monomito, de Joseph Campbell, não me venham com o herói de Pedro Bial) contava as pessoas, comparava com a capacidade do ônibus — e, claro, afiava suas habilidades matemáticas.

Nesse dia, viu que havia 20 pessoas na fila e sorriu aliviado. O ônibus comportava 40 pessoas sentadas, além, claro, de uma escadinha que dava acesso para os últimos acentos que, apesar de quente, era melhor que ir cheirando o sovaco alheio. Matemática salva vidas.

Nosso monomito, tranquilo com a certeza de que não ficaria de pé, iniciou seu ritual sagrado. Primeiro, uma parada na barraquinha do churrasquinho. Às 18 horas, o cheiro do churrasquinho tinha o poder de transformar maminha em picanha na cabeça faminta de qualquer um. Mas, claro, ele não carregava dinheiro, para quê? A moeda usada por ele, e pela maioria dos usuários do metrô terrestre era o poderoso Sitpass, a moeda mais valiosa do Eixão e do mundo.

Dizem até que o Bitcoin nasceu inspirado no Sitpass. Os veteranos da fila sabem que o Sitpass é inigualável: ele compra de tudo, sem essa de troco ou especulação. Um Sitpass vale um churrasquinho, um refrigerante, um saquinho de pipoca, e até aqueles sorvetes multicoloridos, todos com o mesmo gosto de… água gelada.

Certa vez, esse meu amigo, cheio de confiança, tentou pagar uma moça que prestava serviços noturnos na Avenida Paranaíba usando Sitpass. Estava convencido de que tinha encontrado a moeda perfeita para a ocasião. A moça, no entanto, era uma exceção à regra: cobrou 20 reais e um Sitpass, ou talvez fosse um Sitpass mais 20 reais? Até hoje ele não tem certeza. Se você ainda duvida do poder dessa moeda, tente pagar qualquer coisa com Bitcoins na Avenida Paranaíba. Verá como o mundo digital ainda está longe de competir no mercado do carinho casual.

Mas voltando à história, lá estava ele, saboreando o churrasquinho e o refrigerante, distraído. De repente, percebeu que na fila de Hidrolândia já havia 30 pessoas. “Ainda tem espaço de sobra”, pensou, todo desengonçado, enquanto equilibrava o churrasquinho de peito de frango com bacon numa mão e o refrigerante na outra, sem esquecer o saco de ração para coelhos debaixo do braço.

Antes de alcançar a fila de Hidrolândia, ele precisava atravessar outra: a fila para Bela Vista, cidade vizinha que parecia exportar metade da população de Goiás para a capital. A fila de Bela Vista sempre era maior, e ele se perguntava: “Como cabem tantas pessoas numa cidade só?”

Chegou o momento decisivo do dia: pedir licença para atravessar a fila de Bela Vista. Mal olhou para a multidão, deixou o saco de ração cair e, rapidamente, limpou a cara suja de farinha de mandioca. E não era para menos: diante dele estava a menina mais bonita do mundo (segundo os critérios de quem cria coelhos). Ambos se abaixaram ao mesmo tempo para pegar o saco (e não há metáfora aqui, prometo). No encontro dos olhos e das mãos, ele sentiu o mundo girar — não sabia se pela paixão avassaladora ou pelo efeito das bactérias “saudáveis” do churrasquinho ao encontrarem suas tripas delicadas.

Queria dizer algo romântico, mas o máximo que conseguiu foi: “Esta fila é a de Bela Vista, né?” No mesmo instante, sentiu milhares de aplausos internos. Foi um herói, ainda que por segundos. A moça, linda (ainda segundo critérios peculiares), com hálito de cebola (culpa do espetinho vegetariano que ela segurava), respondeu com um simples, mas maravilhoso “sim”. O que é um “sim” maravilhoso? Isso ele não sabia explicar, mas a cabecinha dele transformou aquele “sim” na senha para o amor eterno.

Eles trocaram nomes — sem mentiras. O coração dele acelerou ao ver que a fila para Hidrolândia já tinha 39 pessoas. Ele havia deixado no ar que também ia para Bela Vista só para prolongar a conversa. E agora? Seguir o amor ou seguir para casa?

Nosso herói quase teve um colapso e ficou ainda mais amarelo quando viu um amigo se aproximando (daqueles amigos que são piores que inimigos, pois um inimigo chega e mata seu oponente sem humilhá-lo, justamente porque o inimigo o respeita), também para atravessar a fila de Bela Vista em direção à de Hidrolândia.

— Ele não vai me ver!

Desejou ele, enquanto tentava lembrar algum santo que cuidasse das causas invisíveis.

E lá veio o amigo, em alto e bom som:

— Meu grande amigo Jack! Como vai, seu mala?

— Jack? — perguntou a moça, intrigada.

— É, é meu apelido… — explicou ele, já se preparando para a próxima desgraça.

— Jack do Eixão! Esse cara é o garanhão da lotação! — continuou o amigo, rindo.

A moça ficou assustada, pensando se havia caído na lábia de algum Jack estripador do Cerrado. Mas o amigo logo tratou de esclarecer:

— Brincadeira! Ele é gente boa, só tem cara de malandro… Mas já vou nessa que meu ônibus tá vindo.

E assim o amigo sumiu na multidão, sendo o quadragésimo passageiro do ônibus. E agora, o que fazer? Seguir para Bela Vista e tentar viver uma grande paixão ou voltar para Hidrolândia e seus coelhinhos fofinhos?

Nosso herói olhou para a moça, que também parecia indecisa. Talvez fosse o destino, ou apenas o cansaço do dia, mas ele sabia que aquele momento definia o futuro. A moça, com um sorriso banhado à azeite de oliva e sem graça, deu um passo para frente, a ponto do aroma de cebola e do bacon se mesclarem. Então, ele decidiu…

Passado algum tempo, ele finalmente olhou para ela. Havia algo de melancólico em seu estado, uma sensação de abandono que a deixava vazia e um tanto suja, mas isso não importava para nosso herói. Naquele momento, ele sentiu que sua presença ali poderia preencher o vazio que ambos carregavam. Aproximou-se com cuidado, notando como ela parecia vulnerável, quente ao toque, como se tivesse absorvido toda a exaustão do dia. Ela estava trêmula, vibrante, talvez por uma força que ela não podia controlar, mas ainda assim, havia algo de convidativo nela, uma promessa de conforto.

Ele hesitou por um breve instante, observando-a de perto, tentando decifrar o que ela queria dele, o que ele poderia oferecer em troca. Seus pensamentos vagaram por mil possibilidades, por cenários onde poderiam estar juntos, apenas os dois, longe de toda a confusão do mundo. Ela parecia esperar por ele, e ele, por sua vez, sentiu que aquele encontro era inevitável, quase predestinado.

Então, com um gesto paciente e solene, como quem selava um pacto silencioso, ele se acomodou ao lado dela. As palavras saíram baixas, quase em um sussurro, mas com a firmeza de quem sabe que encontrou seu lugar no mundo:

— Estamos destinados um ao outro, minha querida escadinha!

Eber Urzeda Santos

Crônicas de minha terra

Nuremberg 19.04.2014

“Esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência”.


Leia também o conto que deu origem ao romance “As rosas ao pé de minha janela”: O horror de Hidrolândia

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