Rumores Edealinenses: O Autoengano

“Rumores Edealinenses” mergulha o leitor em uma atmosfera onde realidade e fantasia se entrelaçam de forma inquietante. Neste conto, Eber Urzeda explora a solidão, o autoengano e os perigos de fugir da realidade, ambientados na enigmática cidade de Edealina. Acompanhe uma trama cheia de mistérios e revelações sombrias que desafiam as percepções e permanecem na mente muito além da última página.

Contos de Urzeda - Rumores Edealinenses

Rumores Edealinenses: O Autoengano

“Pouco importa,” disse-me Helena sobre os riscos, com um brilho estranho nos olhos, algo que me fez estremecer por dentro. Pegou-me pela mão, a pele fria como a de um cadáver, e deixamos a Escola Municipal Pedro José Leandro em Edealina antes do último sinal. O descuido do senhor dos portões parecia menos uma coincidência e mais uma conspiração silenciosa. Angustiado, pois a angústia o afeto não mente, acompanhei-a pelas ruas desertas e silenciosas da cidade, sentindo uma presença inquietante à nossa volta, como se algo nas sombras estivesse nos observando, julgando nossos passos.

Enquanto caminhávamos, comecei a notar uma alteração no meu equilíbrio emocional, como se algo invisível estivesse corroendo minha sanidade. A cena de Hanna, musa dos meus poemas bobos de amor, veio à mente, mas agora, seus olhos eram poços de trevas, e seus lábios murmuravam algo que não conseguia entender, mas que me enchia de um medo primal. Ela lançava-me olhares de compaixão, mas havia algo mais profundo, um aviso sombrio que reverberava na minha mente como um sussurro vindo de um abismo.

Passei por vários moradores sem responder aos cumprimentos. Seus rostos pareciam distorcidos, como se não fossem pessoas, mas meras caricaturas de humanidade corrompida. Em pensamento, disse a mim mesmo: “Nunca faltei ao respeito que lhes devo, mas as circunstâncias me obrigam a ser rude.” Mas, por dentro, eu sabia que não eram as circunstâncias; algo estava mudando em mim, algo que não compreendia, mas que me aterrorizava.

Depois de cruzar a Praça da Matriz, que agora parecia mais um campo abandonado, aproximamo-nos de um Pit Dog na esquina. Helena agarrou-se em meu braço, suas unhas cravaram-se em minha carne com uma força sobrenatural, e puxou-me para junto de uma árvore ao avistar duas senhoras com trajes de igreja. Elas caminhavam devagar, os olhos fixos no declive da calçada, como se seguissem um caminho que só elas podiam ver. Se não fosse pelo véu, poderiam parecer estar reverenciando as profundezas.

Helena abraçou-me, colocou o dedo indicador em meus lábios e aproximou seu rosto do meu. Nossos narizes se tocaram, e senti o cheiro de terra molhada e decadência vindo dela, uma fragrância que me fez querer recuar, mas eu estava paralisado, como se seus olhos me tivessem lançado um feitiço.

— Fique quieto! Você sabe quem são aquelas senhoras. Elas não podem, de maneira alguma, ver-me contigo. Continue me beijando; elas são puras demais para bisbilhotar um casal se beijando! — disse Helena enquanto dissimulava um beijo cálido, mas vazio, como se fosse apenas um gesto mecânico, desprovido de qualquer emoção verdadeira, um ato distorcido de uma ação humana.

Com os olhos arregalados, tentei me acalmar para não ser sufocado. Pensava em Hanna: poderia ser ela a louca a me beijar? Não que Helena não tivesse seus encantos, mas havia algo de errado, algo profundamente errado que eu não conseguia nomear. Ela era e ainda é uma mulher de estética impecável, mas agora essa perfeição parecia grotesca, como uma máscara que escondia algo monstruoso.

Seus pensamentos e desejos sempre foram incompatíveis com sua idade e seu coração afeito à aventura. Desfilava pelos corredores da escola causando pânico nos meninos e inveja nas meninas. O problema é que naquela época a mulher da minha vida certamente estava a poucos metros de nós. Eu me preocupava, mas não sabia mais o que era real.

Quando as senhoras desapareceram, seguimos pela Rua Vinte e Um e dobramos à direita na Rua Onze. Outra vez fui arrastado. Desta vez, nos escondemos entre uma árvore e um trator estacionado na calçada, atrapalhando pedestres e cães abandonados. Alguns meninos passaram por nós, mas não demonstraram muita curiosidade ao ver um jovem casal à sombra de uma árvore. Mas, no fundo, eu sabia que éramos observados. Sentia olhares invisíveis sobre nós, julgando, esperando. Continuei andando. Consegui libertar meus braços e os chacoalhei, tentando aliviar o estresse de ser controlado e de tudo que ainda viria.

— O que realmente tenho de fazer? — perguntei sem rodeios, sentindo que a pergunta continha um eco de desespero que nem eu entendia totalmente.

— Calma, Jean! Não há razão para descontrole agora, ok? — disse Helena, mas seu sorriso forçado e sua voz trêmula me diziam o contrário. — É simples: você só precisa me ajudar a recuperar minha bolsa. Preciso das minhas coisas urgente, sabe?

— Tá bom, mas e o Raul? O que você fez com ele? Onde ele está? — perguntei sem pensar, e um frio percorreu minha espinha ao ver o brilho de ódio em seus olhos.

— Um covarde! Um filho da puta! Ele disse que me ajudaria, abusou de mim e desapareceu.

— Como assim… abusou de você? Ele te…

— Não, não foi isso! Na verdade, foi consensual. Mas depois de ficarmos juntos, aquele bosta sumiu e não me ajudou a recuperar minha bolsa.

As palavras dela ecoaram em minha mente, mas havia algo que não fazia sentido, algo que me escapava, mas que me enchia de um terror irracional. Senti que estávamos nos movendo para algo muito mais sombrio do que eu podia imaginar.

Rumores Edealinenses: Onde está Raul?

Preocupado com o desaparecimento de Raul, tentei colher informações de Helena, como prometido a Hanna. Após três dias de um silêncio opressivo, a polícia e os pais de Raul, primo de Hanna, vieram à escola. A presença deles parecia lançar uma sombra ainda mais pesada sobre o ambiente já denso. Desconfiávamos de Helena, pois Raul, apaixonado por ela, sempre a acompanhava até em casa depois da aula.

Mas havia algo mais, algo que não ousávamos verbalizar, um sentimento de que Helena escondia segredos que poderiam levar ao paradeiro de Raul. Não dissemos nada à polícia, e Helena manteve-se em um silêncio quase inumano durante a visita, como se soubesse de algo que a mantinha prisioneira em seu próprio corpo. Decidimos nos aproximar dela, na esperança de encontrar alguma pista sobre o paradeiro de Raul, mas o medo de descobrir o que ela sabia pulsava em nossas mentes como uma dor aguda.

Sentei-me próximo a Helena, tentando pensar em algo que a fizesse baixar a guarda. Mas ela parecia distante, como se estivesse em um lugar muito além do alcance de nossa compreensão. Seus pés batiam nervosamente no chão, um ritmo acelerado que ecoava na sala, misturado ao som de sua respiração ofegante. Seu olhar estava fixo em um ponto indefinido, um vazio que parecia engolir qualquer luz ao redor. Criei coragem e aproximei minha cadeira da dela, sentindo um calafrio percorrer minha espinha.

— Tudo bem contigo, Helena? — perguntei, mas minhas palavras saíram trêmulas, quase inaudíveis. — Você parece nervosa, posso ajudar?

Ela virou a cabeça lentamente, os olhos vazios como poços sem fundo. Um leve sorriso se formou em seus lábios, mas não havia calor ali, apenas um sussurro distante de algo que talvez tivesse sido humano. Com a habitual cara de tédio, ela respondeu:

— É minha bolsa! — disse, descruzando as pernas com um movimento que parecia deliberado, quase ritualístico, enquanto apoiava as mãos nos joelhos. Havia uma tensão em seu corpo, como se ela estivesse prestes a fazer algo irrevogável.

— O que tem sua bolsa? Você a perdeu? — Minha voz saiu mais alta do que eu pretendia, reverberando nas paredes da sala, como se a própria estrutura do edifício estivesse conspirando contra nós.

— Não, não! — respondeu, irritada, os olhos escurecendo com uma fúria que parecia desproporcional à situação. — Eu sei onde ela está, mas… você poderia me ajudar a recuperá-la?

Helena olhou profundamente nos meus olhos, e senti um calafrio quando sua mão direita tocou meu rosto, fria como o toque da morte. Seu gesto deveria ser reconfortante, mas havia algo de errado, como se seus dedos estivessem drenando a vida de mim. Uma explosão de sentimentos confusos me invadiu, um turbilhão de emoções contraditórias que me fizeram sentir como se estivesse à beira de um precipício.

— Claro, uai! Diga onde está que eu a busco pra você! — respondi rápido, mas gaguejando, minha voz agora um mero sussurro, como se estivesse sendo abafada por algo invisível, algo que espreitava nas sombras da sala.

— Não, seu bobinho! — notei a intimidade repentina, mas ela parecia forçada, artificial, como se estivesse tentando mascarar algo. — Temos de ir juntos. Eu mostro onde ela está, e você a pega para mim.

— Por que você não pega sozinha? — retruquei, sem pensar, mas a pergunta pairou no ar, carregada de implicações que não compreendi completamente.

— Porque ela está debaixo d’água, lá no Poço da Pedra. — Ela disse isso como se não fosse nada, mas suas palavras ressoaram em mim como o toque de um sino funerário. — Aquele burro do Raul a deixou cair lá dentro e sumiu. Que raiva! Filho da puta!

O sinal do recreio tocou antes que eu pudesse dizer algo. O som, normalmente comum, pareceu deformado, distante, como se viesse de um lugar além do tempo. Todos se levantaram rápido e passaram entre nós, como sombras fugazes em um sonho. Levantei-me também e disse a Helena que falaríamos depois do recreio.

Olhei para trás e a vi ainda sentada, o corpo imóvel, mas os olhos fixos em algo que eu não podia ver. Levei um susto quando senti alguém puxar meu braço: era Hanna. Corremos pelo corredor, e o som dos nossos passos parecia se perder em um vazio silencioso. Nos escondemos num canto da parede para conversarmos sem sermos vistos, mas mesmo assim, senti como se algo, ou alguém, nos observasse.

— E aí? — perguntou-me Hanna, pressionando-me contra a parede, a urgência em sua voz carregada de uma ansiedade palpável.

Hanna era, e ainda é, uma mulher encantadora, mas naquele momento, a proximidade de nossos corpos não trouxe o conforto habitual. Havia uma sensação de pavor que não conseguia identificar, como se algo estivesse profundamente errado. Sua ausência nos fins de semana sempre me doía, mas agora, parecia mais uma proteção, uma distância que talvez nos mantivesse a salvo de algo terrível.

Encantado pela proximidade de nossos corpos, nada disse. Apenas aproveitei aquele momento de felicidade antes que as mazelas do tempo me tornassem novamente em um ser desejante, que apenas clama pelo ser amado. Durante aquele instante de transe amoroso, recebi dois golpes na costela que me trouxeram de volta à realidade.

— Perdoe-me, eu… Ai! — recebi um beliscão desta vez.

— Fala logo, Jê! Parece que ficou doido!

Apaixonado por ela ter me chamado de “Jê” e com medo de levar outro beliscão, contei a ela minha conversa com Helena. Hanna ficou assustada, e sua reação me encheu de um terror irracional, como se ela soubesse de algo que eu não sabia. Aconselhou-me a não ir, e suas palavras carregavam um peso que não pude ignorar. Eu a tranquilizei, dizendo que não havia o que temer:

— Afinal, sou um bom nadador e o Poço da Pedra não é tão perigoso — disse, mas minhas palavras soaram ocas, como uma mentira que eu precisava acreditar.

Ela concordou, mas impôs uma condição: nos seguiria até o poço para assegurar-se de que nada de mal acontecesse comigo. Achei lindo e aceitei, não por minha segurança, mas por sua presença, mesmo que, no fundo, algo me dissesse que estávamos todos prestes a cruzar uma linha de onde não haveria retorno.

O sino soou novamente, um som que agora parecia prenunciar desgraças. Virei-me para voltar à sala, mas Hanna segurou minha mão e puxou-me para perto. Beijou meu rosto e pediu, quase sussurrando, para desistir:

— Isso pode ser muito perigoso. Melhor não ir. Melhor avisarmos a polícia sobre a Helena e o Raul no Poço da Pedra.

Depois daquele beijo no rosto, o primeiro, senti-me invencível. No auge dos meus quinze anos, achava que poderia quebrar qualquer um ao meio, tamanha a força e a confiança que surgiram em mim. Mas, no fundo da minha mente, um pequeno sussurro de dúvida persistia.

***

Aproximei-me de Helena. Ela estava na mesma posição em que a deixei antes do recreio, imóvel como uma estátua antiga, com um olhar distante que parecia fitar algo além do nosso mundo. Um arrepio percorreu minha espinha enquanto a observava, e uma sensação de desconforto começou a crescer dentro de mim, como se a atmosfera ao nosso redor estivesse carregada de uma presença invisível.

— Cadê a bolsa? Vamos lá. Eu a pego com os dentes, arranco aquela pedra do poço na unha e quebro tudo ao meio — disse, ainda tomado pela força do beijo, mas minhas palavras soaram vazias, como se eu as tivesse dito apenas em pensamento.

— Olha aqui — disse Helena baixinho, seus olhos finalmente encontrando os meus, mas havia algo errado em seu olhar, algo que não conseguia identificar, como se uma sombra pairasse sobre ela. — Ainda temos uma aula de matemática, mas, se quiser, podemos sair antes. Assim, não chegamos tão tarde em casa. O único risco é a correnteza do córrego que passa pelo poço. Normalmente, as águas são tranquilas, mas choveu, então o córrego deve estar cheio. Você terá de saltar comigo para me ajudar. Sabe nadar, Helena?

— Não, não sei. Se soubesse, teria pegado minha bolsa sozinha. — respondeu, irritada, mas havia uma tensão em sua voz, um tremor que ela tentou disfarçar, mas que não passou despercebido.

— Calma, só quero ajudar. É que, se você não sabe nadar, é arriscado. — Tentei manter minha voz firme, mas algo em mim estava mudando, uma ansiedade crescente que não conseguia controlar. As palavras de Helena ecoavam em minha mente, a menção do poço, das águas escuras, como se algo terrível estivesse à espreita, esperando para nos engolir.

— Pouco importa, pouco importam os riscos! — disse Helena, ainda mais nervosa e confusa, mas sua voz carregava um tom quase desesperado, como se estivesse sendo impulsionada por uma força além de sua vontade.

Neste momento, a professora pediu silêncio e continuou a falar sobre Memórias Póstumas de Brás Cubas. Mas as palavras da professora pareciam distantes, como se viessem de outro mundo, um mundo seguro, longe das sombras que agora se aglomeravam ao nosso redor.

Passei o resto da aula encarando Hanna. Ela havia desistido de ajudar Helena, mas eu sentia que poderia conseguir mais informações sobre Raul, e esse desejo crescia dentro de mim como uma necessidade insaciável, uma fome que não conseguia entender. Então, durante o intervalo entre as aulas de literatura e matemática, arrumei meu material e esperei a hora certa.

Pouco antes do final da aula, deixamos os materiais com os colegas e, um a um, pedimos permissão para ir ao banheiro. Helena foi a primeira, saiu rebolando, provocante como sempre, mas havia algo estranho em seus movimentos, algo mecânico, como se ela estivesse sendo manipulada por fios invisíveis. Depois eu. Saí procurando o olhar de Hanna e me deparei com um sinal de “não”, pelo balançar de sua cabeça, e um “não vá”, murmurados pelos seus lábios. Mas eu estava preso em uma teia que não conseguia desfazer, atraído por algo que não compreendia. Não vi quando Hanna saiu, mas ela era a próxima da lista dos “apertados”.

***

Enquanto caminhávamos pela Rua Dezessete, Helena fazia pequenas pausas, virando o rosto para não ser reconhecida pelas pessoas que passavam. Cada pausa era carregada de um silêncio pesado, como se estivéssemos nos movendo por um mundo onde o tempo e o espaço estavam distorcidos. Chegamos à Rua Quinze e descemos bastante, para então pegar a Rua Quatro e voltar em direção à Rua Vinte e Um.

Helena fez uma ou duas piadas sobre a topografia das ruas, chegando a citar Juscelino Kubitschek e Oscar Niemeyer, dizendo que seria melhor eles não visitarem a região. Mas suas palavras soavam estranhas, como se fossem parte de um enigma que eu não conseguia decifrar. Não entendi o sarcasmo, estava mais preocupado em avistar Hanna, mas cada vez mais, parecia que ela estava distante, como um fantasma que eu tentava desesperadamente seguir.

Finalmente, chegamos à Rua Vinte e Um e caminhamos até a GO-319, onde havia uma empresa de laticínios. Helena pediu que eu aguardasse do lado de fora, deu um nó na camiseta, deixando seu piercing à mostra, e entrou. A espera do lado de fora foi sufocante, o ar parecia pesado, carregado com o cheiro de terra molhada e algo mais, algo que não conseguia identificar, mas que me causava um profundo desconforto.

Depois de alguns minutos, ela voltou com um copo de leite, que parecia congelar suas mãos. O copo parecia deslocado, uma coisa tão comum em um cenário tão perturbador, quase como se fosse parte de um ritual do qual eu não entendia o significado. Então, ela teve a ideia de enrolar a parte de baixo da camiseta no copo. Sempre que levava o copo à boca, levantava a camiseta junto, deixando os seios à mostra. Ela realmente parecia sentir prazer em se exibir, mas agora, havia algo obscuro em seu gesto, algo que sugeria mais do que simples exibicionismo.

Continuamos pela GO-319. Chegamos ao Poço da Pedra, o local parecia envolto em uma aura de malevolência, como se o próprio solo estivesse impregnado de algo antigo e maligno. Pulamos a cerca de arame farpado e nos aproximamos do poço. Helena, sem demora, despiu-se completamente, sem nenhum pudor. Mas sua nudez não era algo natural, parecia uma oferenda, um sacrifício para algo que habitava nas profundezas daquele lugar.

Eu não sabia para onde olhar: para ela, para trás, para cima, ou sei lá para onde. O pânico começava a se apoderar de mim, e a sensação de que algo terrível estava prestes a acontecer se tornava insuportável. Tirei apenas o tênis e perguntei onde havia deixado cair a bolsa. Minha voz tremia, e eu me sentia como um cordeiro levado ao abate.

Ela se aproximou, segurou minha mão e disse:

— Venha, ajude-me a descer, mas não me solte.

Segurei sua mão com força. Logo agarrei-me a um galho de uma pequena árvore na margem do poço para apoio. As folhas farfalhavam, como se sussurrassem maldições, e o vento parecia carregar vozes indistintas que não conseguia entender, mas que me enchiam de pavor. Fui soltando-a aos poucos, enquanto ela se afundava com uma das mãos esticada para baixo, tentando tatear o fundo do poço. A escuridão das águas parecia viva, pulsando com uma energia maligna que me repelia. De repente, ela soltou minha mão e mergulhou, desaparecendo nas águas turvas do córrego. O som de seu mergulho foi seguido por um silêncio aterrador, como se o próprio tempo tivesse parado.

Entrei em pânico e tirei a camiseta para pular em seguida. Antes de saltar, porém, senti uma dor profunda na nuca e, desde então, nada mais me lembro. A última coisa que vi foi a escuridão do poço se alargando, como uma boca colossal, pronta para me devorar.

***

Acordei treze dias depois, emergindo lentamente das profundezas de um coma induzido, como se estivesse subindo de um abismo sem fim. A realidade ao meu redor parecia distorcida, como se o mundo estivesse envolto em uma névoa opressiva. Sentia muitas dores na cabeça, pulsando como um martelo que ameaçava rachar meu crânio, e uma confusão desesperadora de pensamentos consumia minha alma, como se algo maligno estivesse enraizado em minha mente, sussurrando horrores incompreensíveis.

A primeira pessoa que vi foi a enfermeira, que, por sorte, era minha prima. Sua presença deveria ser reconfortante, mas havia algo em seus olhos que me deixou inquieto, como se ela soubesse de algo que eu não podia entender.

— O que aconteceu? — consegui murmurar, minha voz fraca e trêmula. — Hanna… Raul… e Helena?

Minha prima fez sinal para que eu fingisse estar dormindo, seus olhos carregados de uma urgência que me encheu de pavor. Obedeci, mas fiquei com os olhos semiabertos, observando-a através de uma fenda estreita, enquanto o quarto parecia escurecer ao meu redor, como se a luz estivesse sendo devorada pelas sombras.

Vi quando ela disse algo ao policial que esperava na porta, suas palavras um murmúrio quase inaudível. Ele saiu, lançando um olhar furtivo em minha direção, como se desconfiasse de algo, seus olhos brilhando de forma estranha, como se estivesse vendo algo além de mim. A porta se fechou com um som abafado, e o silêncio que se seguiu foi carregado de uma tensão quase insuportável. Ela voltou ao quarto, fechou a porta e sentou-se ao meu lado, o rosto pálido e marcado por uma expressão de profunda angústia.

— Jê, o que vou lhe contar é forte e estranho, mas acho que é melhor você saber por mim. — Sua voz estava baixa, quase um sussurro, e cada palavra parecia ressoar em minha mente, criando sons que reverberavam dolorosamente. Senti um mal-estar terrível, um pressentimento de que algo muito pior estava por vir, mas nada disse, apenas esperei, cada segundo se arrastava como uma eternidade.

Ela continuou, a voz tremendo ligeiramente:

— Raul foi encontrado amarrado a pedras no fundo do Poço da Pedra; Helena foi presa com uma bolsa cheia de cocaína e transferida para o presídio da capital. Ela confessou o crime: disse que foi forçada pelos traficantes a levar alguém ao poço para receber a culpa pela morte de Raul, que morreu após discutir com um dos traficantes, o namorado de Helena. Ela disse que, para receber drogas grátis, tinha que captar garotos revendedores, e Raul era um deles. Confessou também que, depois de te ferir, te atirou no poço. Mas, como você não afundou, a correnteza te levou para o barranco. Então, ela te tirou da água e juntou lenha e capim para te queimar. Para sua sorte, uma garota gritou por socorro e foi atendida por peões que trabalhavam perto do Poço da Pedra. Helena fugiu, assustada.

Cada palavra dela parecia uma faca, perfurando minha mente com imagens horríveis. A visão de Raul, amarrado e submerso, preso para sempre nas profundezas escuras do poço, misturava-se com a sensação de afogamento, a água turva me puxando para baixo, enquanto a imagem de Helena, fria e calculista, tentava destruir qualquer vestígio de mim.

— Hanna, o nome da garota é Hanna, ela está bem? — interrompi-a, cheio de medo, e fui tomado por pensamentos pavorosos sobre Hanna. A ideia de que algo também pudesse ter acontecido com ela me enchia de uma angústia que beirava o desespero.

— Não sei o nome dela. Pelo que descreveram, não a conheço. — Suas palavras trouxeram um frio avassalador, uma sensação de perda que ameaçava me consumir. Era como se Hanna estivesse se desvanecendo em minha memória, tornando-se uma sombra, uma figura indistinta que eu não conseguia mais alcançar. Sem outras informações, restou-me apenas aguardar a alta hospitalar para tentar descobrir o que realmente aconteceu com Hanna.

***

Depois de alguns dias, recebi alta do hospital e pude finalmente voltar à escola. As paredes do hospital pareciam ter sugado a vida de mim, e voltar para a escola deveria ter sido um alívio, mas ao atravessar os corredores familiares, senti como se estivesse entrando em um lugar estranho, distorcido. Meu único desejo era ver Hanna de novo, mas algo dentro de mim temia o que eu poderia encontrar.

Cheguei à sala de aula, e todos me olharam surpresos, de certo modo espantados, como se não esperassem me ver ali, como se eu fosse um intruso em meu próprio mundo. A carteira de Helena estava vazia, a de Hanna também. O vazio dessas carteiras parecia gritar para mim, uma ausência que me sufocava. Poucos minutos depois, ouvi passos no corredor. Os passos ressoavam como batidas fúnebres, cada som carregado de uma estranha melancolia. Uma menina linda e sorridente entrou na sala e sentou-se ao meu lado. Seu sorriso deveria ser acolhedor, mas havia algo de desconcertante em sua expressão, algo que não conseguia definir. Lançou-me um olhar de boas-vindas e cumprimentou-me com certo louvor:

— Bom dia, meu nome é Paula, e o seu? Você é novo aqui?

Sentada na mesma carteira, na mesma sala de aula, no mesmo turno, do mesmo ano letivo, estava uma menina com a mesma beleza de Hanna, mas com outro nome, Paula. Um calafrio percorreu minha espinha enquanto a observava, e uma estranha sensação de déjà vu tomou conta de mim, como se estivesse revivendo um pesadelo que eu não conseguia escapar. Antes de responder, olhei em volta: os alunos eram os mesmos, exceto por Hanna e Helena.

O ambiente ao redor parecia pulsar com uma energia desconcertante, como se o mundo estivesse tentando se rearranjar ao meu redor, apagando tudo o que conhecia. Então, pensei, confuso: “Será que prefiro a literatura ilusória ao amor? A falta à presença? Os finais de semana às segundas-feiras? Creio que sim. Minto a mim mesmo, mas me convenço: não sou inferior. Dito isso, temo que o amor seja apenas uma ilusão, uma negação dentro da minha solitude. Sempre me senti bem, calado no meu canto. Chega de autoengano? Talvez… Por enquanto, sei que preciso abandonar o roteiro antigo e começar uma nova história, porque agora sei: Hanna foi uma ilusão, Hanna nunca existiu.”

Voltei a olhar para a menina, tentando suprimir a inquietação crescente em meu peito. Sorri e a respondi com a cortesia dos apaixonados, mas minha voz soou estranha aos meus próprios ouvidos, como se estivesse falando através de outra pessoa:

— Olá, Paula, meu nome é Raul, encantado! E sim: sou novo aqui. Aliás, todos somos!

Eber Urzeda dos Santos

Coleção: Trevas do Eu

08.12.2019

“Esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência”.


Leia também o conto que deu origem ao romance “As rosas ao pé de minha janela”: O horror de Hidrolândia

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A obra “Rumores Edealinenses: O Autoengano” faz parte do projeto ‘Contos de Urzeda’, selecionado para integrar o livro de contos ‘Trevas do Eu’, de Eber Urzeda dos Santos.

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