Sobre anjos e fuscas

Descubra ‘Sobre anjos e fuscas’, um conto que mergulha nas memórias de infância e juventude em Hidrolândia, Goiás. Através de uma narrativa cativante, explore a mistura de simplicidade, sonhos e a paixão pelo futebol, enquanto revive os encantos de uma época marcada pela amizade e pela imaginação. Boa leitura!

Sobre anjos e fuscas - Contos de Urzeda
Sobre anjos e fuscas – Contos de Urzeda

Contos de Urzeda apresenta: Sobre anjos e fuscas – um conto de Eber Urzeda dos Santos

Dedicado a Gabriel Batista Ferreira

Hidrolândia, incrustada no coração de Goiás, repousa como uma pérola escondida entre as curvas do tempo e da memória. Redeada por águas enigmáticas e árvores retorcidas que guardam segredos tão antigos quanto as raízes profundas de suas jabuticabeiras, esta cidade é um relicário de histórias e lendas. No presente, o passado se entrelaça, criando um emaranhado de tradições e reminiscências que ecoam em meus sonhos e nas minhas memórias afetivas, as quais considero a maior herança cultural que carrego. São essas lembranças que mantêm vivo o elo com aqueles que participaram do meu crescimento, transformando-me na pessoa que sou hoje.

Durante a nostálgica década de noventa, a metade dos meus amigos tinha o costume de se acomodar com estratégia sobre o meio-fio daquela esquina, situada a dois quarteirões do então recém-inaugurado Terrão — campo de terra batida de Hidrolândia. Esse local, batizado pelas mães da cidade de “Nodão”, era famoso pela sua terra vermelha, que tingia as roupas com mais eficácia do que as nódoas de caju.

Perto de um dos gols, imponente e acolhedor, elevava-se um pequizeiro. Seus galhos robustos e bem distribuídos proporcionavam o refúgio ideal para a outra metade dos meus amigos. Entrelaçados entre as folhas e frutos, no alto, eles encontravam-se acomodados, desfrutando de uma visão ampla do local. Com os olhos atentos e imaginações fervilhantes, competiam para serem os primeiros a avistar algo extraordinário, o que, na nossa fantasia, era a chegada triunfante do nosso treinador numa “espaçonave”. Esse ritual semanal, mais do que um mero jogo, transformava-se em um momento de união e expectativa, onde cada movimento no horizonte trazia um misto de esperança e aventura.

A moda daquele tempo tinha seu charme peculiar: trançar os cadarços do kichute — aqueles sapatos de futebol, de lona e borracha —, subindo-os até os joelhos, criando um visual que era ao mesmo tempo prático e estiloso. A maioria dos garotos dispensava as meias, preferindo sentir diretamente o toque rústico do material. Não consigo recordar se alguém possuía chuteiras de marca, daquelas que se vê em jogadores profissionais; naqueles tempos, elas eram artigos de luxo inimagináveis.

O kichute, apesar de sua simplicidade, tinha um quê de status. Eram pesados, sim, e nos dias de calor, sentíamos nossos pés queimar dentro deles, mas quem se importava? Eles eram o símbolo de nossa paixão pelo futebol. Dez, quinze minutos correndo e já sentíamos os pés queimarem dentro daqueles sapatos de pneu, mas ninguém ousava reclamar. Afinal, usar kichute era, de certa forma, um distintivo de honra.

E não era só nos campos de futebol que eles brilhavam. Nas noites douradas pela luz dos postes da Praça do Cruzeiro, alguns rapazes desfilavam com seus kichutes, como se fossem sapatos de grife. Fazia parte do ritual da juventude: calçar o kichute para dar um rolê na praça, para trocar olhares e sorrisos com as meninas, ou, como dizíamos, “para dar uns lancinhos nas meninas”. Tentavam impressioná-las com aquele jeito despojado e cheio de estilo. Eram tempos de simplicidade, onde moda e futebol se misturavam de forma única.

Havia um garoto em nosso grupo que se destacava por não compartilhar do mesmo entusiasmo pelo futebol. Os outros o consideravam um tanto quanto estranho, mas eu sempre vi nele um espírito de curiosidade insaciável. Em vez de correr atrás da bola, ele escolhia o pequizeiro como seu posto de observação, escalando até um galho confortável de onde podia vigiar o céu e qualquer máquina que vinha da direção do Riacho Grimpas. Ali, armado com um binóculo desgastado pelo uso, um lápis bem apontado e um bloquinho de papel quadriculado, ele passava horas a fio.

Esse garoto tinha uma imaginação que ia além das fronteiras da nossa pequena cidade. Para ele, aquele pequizeiro era sua torre de controle, e o céu e os confins das ruas, um vasto oceano de possibilidades. Com os olhos colados no binóculo, ele buscava incansavelmente por sua espaçonave — a nave imaginária do nosso treinador. E, invariavelmente, era sempre ele quem a via primeiro. Com um entusiasmo científico, ele anotava suas observações, fazia cálculos complexos que nenhum de nós entendia, e na manhã seguinte, orgulhosamente afixava seus resultados no mural da escola para todos verem.

Eu sempre acreditei que ele se tornaria um astronauta, explorando a imensidão do universo. Hoje, ele ainda mede o tempo e a velocidade, mas de espaçonaves reais. Seus sonhos infantis de olhar para as estrelas se transformaram em uma carreira onde ele é pago para fazer exatamente isso. Em sua jornada, ele trocou o pequizeiro por telescópios e os binóculos por equipamentos sofisticados, mas sua curiosidade e fascínio pelo espaço permanecem os mesmos.

Pois bem, todos estávamos a postos, nossos olhos fixos naquela esquina familiar de onde, segundo nossa imaginação fértil, a espaçonave habitualmente surgia. Eu dividia minha atenção entre o garoto com o binóculo e os que estavam sentados casualmente sobre o meio-fio, sem me descuidar daqueles outros aventureiros que haviam escalado o pequizeiro. Observava atentamente o menino das matemáticas; ao ver o binóculo abaixar lentamente e o caderninho com o lápis erguer-se em prontidão, eu sabia que era hora de dirigir meu olhar à esquina. E sempre, como se fosse um ritual ensaiado, não demorava para que ouvíssemos o primeiro estrondo do escapamento da nossa espaçonave. Esse som era como um sinal para os pássaros e cães da rua, que se assustavam e dispersavam em um frenesi absurdo.

Logo em seguida, uma série de explosões anunciavam a chegada triunfal da nave — nosso velho fusca, que, de forma exuberante, acelerava morro acima. Os garotos mais audazes, num impulso de adrenalina e alegria, se lançavam sobre o teto do fusca, agarrando-se como podiam. Outros, menos afortunados ou talvez mais cautelosos, seguiam correndo atrás do carro, com seus kichutes batendo contra o solo empoeirado, levantando uma nuvem que se misturava com a poeira levantada pelo fusca. Nessa corrida alucinante, o fusca parecia emergir de uma nuvem mágica, uma mistura de poeira e uma beleza inconfundível que só aqueles momentos podiam criar.

Realmente, não consigo me lembrar da cor exata do fusca. Essa particularidade sempre me escapa, muito por conta de um pequeno desvio daltônico, uma característica que minha mulher diagnostica com uma mistura de exasperação e carinho. “Vai sair assim, todo colorido?”, ela costuma perguntar com um leve sorriso sempre que nos preparamos para ir à igreja. Cada vez, eu me olho de cima a baixo no espelho, buscando entender a discrepância em minha escolha de roupas, mas, sinceramente, não noto nada de estranho. As cores, para mim, sempre foram um enigma, tal como os mistérios da fé e da religião.

Eu nunca fui muito adepto de seguir doutrinas ou entender a complexidade das paletas de cores. Talvez por isso, eu sempre tenha encontrado um certo fascínio na simplicidade das coisas, na maneira como as cores se misturam de forma aleatória no meu guarda-roupa, sem seguir padrões ou regras. Mas, no final das contas, isso nunca me incomodou. Pelo contrário, sempre gostei dessa minha visão peculiar do mundo — uma vida colorida, mesmo que as cores nem sempre estejam no lugar “certo” segundo os padrões convencionais. Há, nessa desordem cromática, uma espécie de liberdade que sempre me agradou.

Após a euforia da corrida, quando a poeira finalmente começava a assentar, o momento de tranquilidade era instaurado. O treinador, cujo nome angelical sempre nos parecia um sinal de sua bondade, se preparava para o que era mais do que um mero aquecimento físico. Antes de escalar os times, ele nos reunia para uma pequena palestra. Longe de ser um discurso típico de campo, repleto de metáforas bélicas e incentivos agressivos, ele escolhia falar sobre algo mais fundamental: nosso desempenho escolar.

Nessa hora, a energia do campo se transformava. Todos nós, os aspirantes a jogadores de futebol, ficávamos em silêncio, nossas mãos entrelaçadas atrás das costas, os olhos fixos no chão, e uma expressão de orelhas murchas dominava o grupo. Era um momento de reflexão, um contraponto à agitação física que nos consumia momentos antes. No meio de nós, contudo, destacava-se o garoto do binóculo. Ele era a exceção, ousando manter contato visual com o treinador, com um risinho irônico desenhado em seu rosto. Em seu caderninho quadriculado, anotava algo totalmente alheio à palestra: a velocidade média do fusca do treinador, desde a esquina da Avenida Goiânia até o “Nodão”. Com a certeza de um cientista, ele afirmava que o fusca alcançava impressionantes 200 km/h na subida, um feito que, para nós, parecia tão real quanto mágico.

Naquela época, nenhum de nós possuía as ferramentas intelectuais para questionar suas afirmações. Por conta disso, o garoto do binóculo se tornava, nesses momentos, o centro das atenções, o “dono da situação”. Ele detinha o conhecimento, o poder de transformar a realidade com seus cálculos e teorias, algo que, aos nossos olhos juvenis, era tão fascinante quanto incontestável.

Terminada a palestra do treinador, um silêncio expectante pairou no ar. Todos os olhares estavam fixos nele, enquanto o sol começava a se pôr, tingindo o céu com tons alaranjados. O treinador, com uma expressão que misturava seriedade e compreensão, olhou para o grupo de garotos ansiosos e fez um anúncio surpreendente: “O garoto do binóculo será titular, capitão e vai jogar com a dez”, disse ele, sua voz ressoou com uma autoridade incontestável.

Havia algo na maneira como ele falou que impedia qualquer argumento. Não era apenas uma ordem; era um desafio, um teste. Ninguém protestou, nem mesmo o antigo camisa dez, que era conhecido por marcar dois gols por jogo, mas com média cinco na escola. A decisão do treinador tinha uma lógica implacável, um ensinamento que ia além do campo de futebol: “Quem tira 10, joga com a 10”. Era uma regra simples, mas carregada de significado, uma lição que transcendia o jogo e falava diretamente aos valores que o treinador tentava incutir em nós.

Naquele momento, nossos rostos perderam a inocência de anjos. A decisão do treinador confrontou-nos com uma realidade mais complexa, onde o mérito e o esforço eram tão importantes quanto o talento natural. Enquanto o garoto do binóculo, visivelmente nervoso, mas determinado, vestia a camisa dez, nós nos perguntávamos sobre as implicações daquela escolha.

O treinador, percebendo nosso desconforto, aproximou-se e colocou a mão sobre o ombro de um dos garotos. “No futebol, como na vida, cada um de vocês tem um papel a desempenhar. Hoje, é a vez de ele mostrar o que pode fazer, não só para o time, mas para si mesmo”, explicou. Suas palavras eram firmes, mas havia um brilho de encorajamento em seus olhos.

Recordo-me vividamente da simplicidade e até da precariedade dos nossos treinos, realizados naquele campo de terra batida, salpicado aqui e ali com cascalho vivo, que desafiava não só nossa habilidade no jogo, mas também a resistência dos nossos pés descalços ou mal protegidos pelos kichutes. O campo, com suas irregularidades e surpresas, era um microcosmo de aventura e desafio para nós.

A bola, esse objeto redondo e surrado, era como um tesouro sagrado, o epicentro de todos os nossos sonhos de glória e diversão — exceto, é claro, para o garoto que sonhava com as estrelas. Ela não era apenas um objeto para chutar; era a nossa passagem para um mundo onde cada chute, cada gol, cada defesa era carregado de significado e emoção. Quando a bola rolava, o mundo à nossa volta parecia desaparecer, restando apenas o jogo, nosso pequeno universo particular.

E no centro desse universo estava o treinador, um homem que, para nós, parecia possuir uma compreensão quase sobrenatural de cada jogador. Ele não apenas nos ensinava sobre futebol, mas parecia enxergar algo mais profundo em cada um de nós, algo que talvez nem mesmo nós víssemos. Na sua presença, sentíamos como se ele visse um anjo em cada jogador, com suas qualidades únicas e potenciais a serem descobertos. E, em troca, nós o víamos como o anjo guardião de todos nós, o guia que nos conduzia não apenas através dos jogos, mas nas lições da vida que esses jogos simbolizavam. Mas, de vez em quando, ele aparecia com essas ideias malucas: escalar o garoto do binóculo para jogar com a camisa dez.

Dentre as várias lições que a vida me ensinou, esta se destaca e sempre a carrego comigo: não importava se estávamos equipados com kichutes ou binóculos, o olhar do nosso treinador era sempre igualitário. Ele tinha uma maneira especial de cobrar cada um de nós. Para os meninos de kichute, ele exigia melhores resultados na escola, plenamente consciente das barreiras que o sistema impunha contra uma educação igualitária. Sabia que para muitos de nós, o sonho da escola era tão desafiador quanto um campo de futebol irregular. Mas sua esperança era inabalável, e ele nos incentivava a lutar contra as adversidades, a buscar conhecimento além das quatro linhas do campo.

Por outro lado, ele também desafiava o garoto do binóculo, cobrando que ele chutasse bem com ambas as pernas. Era uma maneira de dizer que, mesmo na busca de estrelas e espaçonaves, não deveríamos negligenciar as habilidades terrenas. Hoje, compreendo que o que realmente importava era ter boa-vontade, o esforço para transcender nossas limitações, seja no campo de futebol ou na sala de aula.

Embora eu não tenha notícias da maioria dos garotos do meio-fio e do pequizeiro, sei que todos nós, incluindo o garoto do binóculo, carregamos conosco o impacto inestimável que nosso treinador teve em nossas vidas. Ele nos ensinou muito mais do que futebol; ensinou-nos sobre a vida.

À medida que a hora do jogo se aproximava, o garoto com a camisa dez estava visivelmente nervoso, tremendo e com o queixo batendo em ansiedade. Nesse momento, sem hesitação, todos nós nos aproximamos e o envolvemos em um abraço coletivo e reconfortante. De longe, ouvimos passos apressados e uma voz familiar. Era o antigo camisa dez, que, com um ímpeto fraterno, nos afastou gentilmente e abraçou o novo titular da camisa. “Vai pra cima deles, cara”, ele incentivou, antes de correr de volta para o que chamávamos de “barranco de reservas”, uma vez que bancos ainda eram um luxo desconhecido no nosso terrão.

Dessa história toda, a memória mais vívida que carrego comigo é do último diálogo entre o treinador e o garoto do binóculo, logo antes de o jogo começar. O garoto, vestindo a camisa dez recém-entregue pelo treinador, expressou suas dúvidas:

— Tudo bem! Segundo minhas leituras sobre futebol, o camisa dez é responsável por conectar a defesa ao ataque, jogando na meia esquerda e tendo liberdade para se movimentar entre as linhas defensivas do adversário… Mas, na prática, o que eu faço lá dentro?

O treinador, com um sorriso que misturava compreensão e encorajamento, respondeu:

— Faça apenas o seu melhor, garoto!

Essas palavras, embora simples, encapsulavam a essência da filosofia do treinador. Era um lembrete poderoso de que, no grande jogo da vida, o mais importante é dar o melhor de nós mesmos, independentemente do papel que desempenhamos. Seja driblando obstáculos com uma bola nos pés ou desvendando os mistérios do universo através de um binóculo, o que realmente conta é a paixão e o esforço que dedicamos a cada momento.

O resultado daquele jogo, fosse vitória ou derrota, escapou da minha memória. No entanto, o que permaneceu gravado foi o instante em que todos nós, tanto reservas quanto titulares, nos apertamos dentro da ‘espaçonave’ do treinador, a caminho do bar do Chiquinho. Ali, enquanto apreciávamos um refrescante guaraná, ouvíamos fascinados as explicações entusiastas do garoto do binóculo sobre o sistema de refrigeração dos motores do fusca.

Eber Urzeda dos Santos

Contos hidrolandenses

Nuremberg 20.11.2023

Nota do autor:

Decidi embarcar em uma jornada literária muito especial: criar uma série de contos para homenagear as figuras marcantes de Hidrolândia, que desempenharam um papel fundamental na minha formação, tanto escolar quanto como cidadão. Essas pessoas, com suas histórias e lições, moldaram a pessoa que sou hoje e merecem ser celebradas em palavras. O conto “Sobre Anjos e Fuscas” é o início dessa série. Nele, reconto memórias da minha infância e adolescência, dando vida a personagens inspirados naqueles que, de alguma forma, influenciaram minha jornada. Este conto é uma forma de agradecimento e um tributo à comunidade que me viu crescer, um reflexo do meu apreço e gratidão por cada ensinamento, cada sorriso e cada desafio compartilhado. Através destes contos, espero não apenas preservar as memórias de figuras tão importantes na minha vida, mas também compartilhar com outros a riqueza e a singularidade da cultura hidrolandense, que tanto influenciou minha visão de mundo.

Instagram: @urzedacontos

“Esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência”.

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Leia também o conto que deu origem ao romance “As rosas ao pé de minha janela”: O horror de Hidrolândia

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