Sobre meninas e libélulas

“Sobre Meninas e Libélulas”, um conto que mescla os mistérios da adolescência com a delicadeza das libélulas. Este conto, uma peça fundamental da coleção “Trevas do Eu” de Eber Urzeda dos Santos, explora a intersecção entre sonhos e realidades, levando o leitor a refletir sobre crescimento, escolhas e a essência da vida. Envolva-se nesta narrativa cativante e permita-se ser transportado para um mundo onde literatura e fantasia se encontram. Boa leitura!

Sobre meninas e libélulas - Contos de Urzeda
Sobre meninas e libélulas – Contos de Urzeda

Parte 1: sobre libélulas

Em um mundo cheio de mistérios e lendas, pairava uma particularmente intrigante sobre libélulas. Em um canto especial de seu quarto de adolescente, uma mistura peculiar de cores vibrantes e sombras convidativas, Adriana acomodava-se na velha cama de madeira que gemia levemente sob seu peso. Então, começava a ler um desses livros que surgem como bússolas inesperadas durante a navegação turbulenta da adolescência. Era um desses livros que, por azar ou por postergar a própria vida, acabamos deixando esquecido em um canto empoeirado, convencidos da compreensão de que o futuro é apenas uma questão de saber esperar.

Em seu santuário particular, protegida por uma porta que ostentava um antigo trinco enferrujado, Adriana mergulhava naquele livro. Seus olhos voavam pelo teto pintado de azul-celeste, enquanto seu imaginário era transportado para uma infinidade de possibilidades.

Para Adriana, o ato simples de manter os pés aconchegados sob as cobertas desbotadas, estampadas com flores já apagadas, tornava-se uma metáfora para a inescapável conexão entre o presente e o futuro. A expressão “pés quentes, cabeça fria” ressoava em sua mente como um mantra, um lembrete de que o presente é um moldador contínuo do que está por vir. Cada momento vivido era uma pegada na praia da existência, um registro temporal que, se não cuidadosamente considerado, poderia levar a um precipício tenebroso e assustador.

Diante dessa encruzilhada, Adriana vislumbrava dois caminhos dolorosamente divergentes: o retrocesso ao conforto enfumaçado e familiar da cama ou o mergulho no caos impiedoso, um conceito que, para ela, evocava o mito de Hesíodo. Embora essas escolhas parecessem opostas, Adriana percebia que ambas poderiam levar ao mesmo destino: uma queda vertiginosa, infindável, agonizante e eterna.

No entanto, naquela ocasião, Adriana desvelava o fascínio único que a leitura proporciona. Sua essência vibrava como uma corda de violino sob o arco da curiosidade, enquanto seus pés, enfiados em meias de lã com desenhos de corujas, continuavam aconchegados sob as cobertas. Ainda que a rotina cinza e monótona tentasse prendê-la com suas garras invisíveis, ela se rebelava. Ela não permitia que as amarras do cotidiano a impedissem de desbravar novos universos e concepções, de ampliar sua visão de mundo e de se embrenhar na floresta de compreensão que o livro lhe apresentava.

A lenda da ninfa que sonhava em ser libélula

— Eu sou uma libélula! — exclamou uma ninfa submersa nas profundezas cristalinas de um lago, cujas águas dançavam e ondulavam ao toque da brisa. O som de sua voz ressoou em bolhas de ar que se elevaram à superfície, estalando como pequenos clarões sonoros e delicados. Ela contemplava seu reflexo no espelho d’água, uma imagem tremeluzente e distorcida pela superfície ondulante, como uma tela impressionista viva.

Sua origem era uma sinfonia aérea de encontros e despedidas, um lindo e triste ballet de vida e morte. Ainda em forma de ovo, a pequena ninfa fora abandonada à margem de um lago, cujas águas mornas e límpidas escondiam um mundo de mistérios e encantos. A margem era um caleidoscópio de pedras lisas e seixos coloridos, uma moldura perfeita para o berço da vida que estava por vir.

Quando o pequeno ovo finalmente eclodiu, dando lugar à criatura quase translúcida que se esticava e contorcia, começou a fase mais assustadora e reveladora de sua metamorfose: o estágio de ninfa. Foi nesse estágio que ela iria enfrentar desafios e revelações que iriam moldar a criatura que estava destinada a se tornar.

A ninfa era jovem, mas logo percebeu que teria de passar muito tempo partilhando as profundezas do lago com girinos inquietos e outras criaturas menos graciosas, que apenas encenavam, no grande palco do lago, o papel de figurantes que a vida lhes havia atribuído. O conhecimento desta realidade incutiu nela um medo, um medo que era como um nevoeiro, difuso e sem forma. Era um medo que se assemelhava ao dos girinos quando se transformam em rãs ou ao medo das próprias libélulas, que pairam angustiadas, sem saber exatamente o que temem.

A ninfa, no entanto, amava a superfície, aquela fronteira líquida entre o mundo em que vivia e o mundo que ansiava conhecer. Ela costumava explorar a parte mais rasa do lago, um local onde os juncos esguios roçavam a superfície com delicadeza, onde a luz do sol tocava as águas e se fragmentava em miríades de estrelas dançantes. Ela gostava de contemplar as coisas que existiam acima, observando-as através de sua perspectiva distorcida. No entanto, mal sabia ela que sua visão era uma paródia cruel da realidade. Tudo o que via através de sua lente de água era ampliado e distorcido, uma ilusão criada pela física do seu mundo subaquático. Era como se a água estivesse rindo das travessuras daqueles que inventaram o instinto animal, jogando um jogo perverso de luz e sombra com a ninfa ingênua.

A ninfa cultivava um anseio incandescente que pulsava em cada célula de seu ser. Ansiava por distorcer o relógio do tempo, acelerando o compasso dos dias e noites que passava submersa naquele mundo verde-azulado. Cada dia, cada minuto era uma tortura interminável enquanto ela contemplava a vida para além daquele lago tranquilo, um espetáculo de liberdade que ela ansiava emular.

Sonhava acordada com os seres voadores, aqueles que cruzavam o céu de azul infinito sem qualquer amarra. Imaginava a sensação maravilhosa de voar em seis direções distintas, o vento acariciando seu exoesqueleto, o sol aquecendo suas asas. “Quão feliz serei”, murmurava para si mesma, “Quão livre serei quando finalmente puder escolher onde pousar, onde viver”. Sonhava com o canto dos pássaros, o perfume das flores e a visão deslumbrante do mundo a partir do alto.

Em uma ocasião, sua curiosidade e desejo a levaram tão perto da superfície que suas antenas finas romperam a lâmina d’água, penetrando no mundo dos insetos — considerados os seres mais livres de todos. Pela primeira vez, experimentou o frescor de uma corrente de ar, uma sensação tão estranha quanto maravilhosa. A ninfa sonhadora sentiu as pernas fraquejarem, uma mistura de medo e excitação a inundou, mas um impulso irresistível a enchia de coragem. A liberdade e a angústia — duas forças opostas, porém inseparáveis — surgiram como o resultado de uma explosão de emoções. No entanto, cinco ou seis segundos antes de cometer a ousadia de saltar para fora do lago, seu instinto de sobrevivência acalmou-a, controlando seus impulsos selvagens de liberdade.

Numa manhã trágica — uma manhã tão ordinária quanto todas as outras para a ninfa — ela experimentou um terror incomparável. Sentiu falta de ar, uma sensação de sufocamento se apoderou dela como um polvo envolvendo sua presa com seus tentáculos. A impressão era que sua própria carapaça se rebelava contra sua natureza sonhadora, contra seu desejo de viver em um ambiente tão impróprio e hostil para as ninfas.

A ninfa tentou resistir, lutou com todas as suas forças contra a corrente invisível que a expulsava de seu lar. A luta foi intensa e desesperada, e só chegou ao fim quando ela percebeu que já não era senhora de sua própria casa. Exausta, a ninfa se entregou a um sono profundo e sombrio, um sono povoado pelos sonhos de se tornar e pelos pesadelos de não ser. Foi um sono que se assemelhava à morte, mas que também continha a promessa de um renascimento, de uma nova vida que estava prestes a florescer.

Despertando em meio a uma sensação ardente, a nova criatura abriu os olhos. Uma visão extraordinária se desdobrou diante dela, espetacular o suficiente para ofuscar temporariamente a dor severa de ser arrancada de seu lar. Encontrava-se sobre a superfície agora, completamente transformada: exibia asas lindas e vibrantes que pareciam pintadas com cores que o lago nunca sonhou existir, olhos aguçados que cortavam a paisagem com clareza, e seu corpo se adaptava à respiração terrestre com facilidade.

Um redemoinho de sentimentos inebriantes a inundou. Euforia, triunfo, alívio, todos se juntaram em um delicioso coquetel emocional. Assim, cheia de empolgação e uma sensação de poder quase palpável, preparou-se para o que seria seu tão sonhado primeiro voo. As quatro asas vibraram em antecipação, seu abdômen recém-desenvolvido alinhado com a precisão de uma dançarina e suas pernas flexionando-se para equilibrar o corpo em perfeita simetria. No entanto, pouco antes de decolar, a visão de sua antiga carapaça grudada em um galho próximo à margem do lago fez com que o que deveria ser o momento de estreia no voo, se transformasse em um episódio de fuga.

Recém-libertada da condição de ninfa e agora desfrutando da fase final de sua metamorfose, a libélula recém-nascida encontrou-se à mercê dos ventos, cercada por outros insetos que sobrevoavam a superfície do lago. Embora o voo inaugural trouxesse um júbilo arrebatador, o momento de solidão que se seguiu quando pousou em um galho sobre o lago trouxe consigo uma nuvem de melancolia.

Ao olhar para baixo, para as profundezas aquáticas, viu a figura de uma ninfa olhando para cima através do espelho líquido que separava seus mundos. Era como se estivesse vendo a si mesma: uma ninfa sonhadora, presa dentro do lago, encantada com a possibilidade de um futuro mais grandioso. Um saudosismo tênue inundou seu peito, um vazio familiar, semelhante ao que sentia durante sua fase aquática, retornou para assombrá-la. A imagem foi uma cruel lembrança de sua fase de libélula: a última e mais breve etapa de uma existência efêmera e sem propósito.

Sem perspectivas para o futuro, um sentimento de desespero começou a se infiltrar, manchando a alegria do voo. Um desejo avassalador de retornar ao lago, à segurança conhecida, começou a dominá-la. O lago, embora limitado, era familiar, oferecia um abrigo. Ela ansiava pela segurança daquelas águas, ansiava pela simplicidade de seu passado, enquanto enfrentava a complexidade assustadora de sua realidade atual.

A libélula agora se encontrava, a cada amanhecer, pousada em um galho esquelético à margem de seu antigo lago, o qual conhecia tão intimamente. Sua visão se perdia na superfície serena e transparente da água, uma mistura de nostalgia e tristeza pesando em seu coração como uma pedra. Em voz baixa, quase um sussurro levado pelo vento, ela confessava: “Hoje, eu sou uma libélula, mas nos dias de minha vida como ninfa, tudo parecia mais simples, mais encantador, mais repleto de alegria”.

Um dia, exausta do incessante bater de suas asas, a libélula encontrou-se ansiando pela visão distorcida que o lago lhe proporcionava. Recordou-se de seu reflexo nas águas límpidas e calmas do lago, quando tudo lhe parecia um sonho surreal e distante. Nesse momento, ela lamentou pela escassez dos risos genuínos de sua versão mais jovem, os quais se intercalavam com as pequenas tristezas cotidianas. Embora fossem poucos, aqueles risos eram seus e seus somente; surgiam do mais profundo de sua alma e para lá retornavam após ecoar na vastidão do lago.

“Posso me permitir chorar?”, ela questionou, a voz ecoando no silêncio do amanhecer. E, sem esperar uma resposta, permitiu-se derramar lágrimas, umedecendo as asas cintilantes com a tristeza que a inundava.

Mais uma vez, a libélula sonhadora experimentou o medo, um terror esmagador, mas junto a ele emergiu uma vontade quase irresistível de saltar de volta para o abraço acolhedor do lago. Mais uma vez, liberdade e angústia — duas forças opostas ainda de mãos dadas — se apresentaram diante dela, surgindo de um fervilhar de emoções contrastantes.

Porém, no momento crucial, apenas cinco ou seis segundos antes de tomar a decisão de retornar ao lugar de onde veio, seu instinto de sobrevivência se ativou, acalmando-a, freando seus impulsos autodestrutivos. Certezas a invadiram, soprando a frase em seu pensamento como um mantra: “Eu sou uma libélula!”. E assim, as libélulas encontram seu fim, adorando a certeza absoluta, mesmo quando ela está repleta de angústia.

***

Adriana concluiu a leitura, uma sensação estranha tomou conta de si, como se compartilhasse a angústia da ninfa, perdida em seus sonhos de dançar no céu como as libélulas, e a agonia da libélula, que afirmava que a felicidade verdadeira residia nos dias como ninfa, submersa no abraço acolhedor do lago. “O único tempo que realmente possuímos é o agora”, refletiu Adriana. Ela fechou o livro com cuidado, como se fosse uma criatura frágil, e o deixou descansar sobre os cobertores da cama, cujas cores agora pareciam um pouco mais apagadas.

Ela se levantou, com o peso da história ainda ressoando em seu peito. Ao abrir a porta, sentiu como se estivesse de frente para um precipício, o abismo da vida real aguardando por ela além do refúgio de seu quarto. No entanto, a vida surgiu diante dos olhos da jovem, tão feroz e imprevisível quanto sempre, mas Adriana não se deixou abalar.

“Encarar o abismo seria uma loucura, libélulas não podem ir além de sua natureza”, ela sussurrou para si mesma. “Mas eu não sou uma delas”. Com esse pensamento, Adriana decidiu desafiar o desconhecido: voltou-se uma última vez para o quarto, e seus olhos contemplaram um pouco mais o livro solitário sobre a cama, então deixou para trás as dúvidas que tentavam se enraizar em sua mente. Sentindo a alma renovada, ela escolheu seu sorriso mais profundo e, com coragem, saiu para conquistar o mundo…

Parte 2: sobre meninas

Era um conto sobre meninas, um folclore cheio de sonhos e dúvidas. Aníadra havia encontrado um espaço aconchegante para si, um recanto tranquilo em uma pedra submersa, quase beijando a superfície espelhada do lago, onde começou a ler um daqueles livros misteriosos que parecem surgir à margem do lago enquanto ainda somos ninfas. Esses livros, lamentavelmente, muitas vezes são negligenciados, vítimas de uma mistura caprichosa de infortúnio e de nossa tendência para adiar a vida. Afinal, ali deitadas à beira do lago, sob o abrigo cristalino das lâminas d’água, com os olhos fixos no céu refletido acima, a gente se perde na projeção da superfície que oferece uma miríade de possibilidades, nascidas da compreensão de que o futuro é apenas uma questão de saber esperar.

A arte de manter as patas descansadas é um jogo delicado que se equilibra na conexão inevitável entre o presente e o futuro; é no contexto do agora que o molde do mundo é forjado, impresso pelas marcas indeléveis de nossos passos. Se falharmos em moldar esse momento, nos encontraremos diante de um abismo aterrorizante, deparando com duas opções dolorosas: recuar para o conforto familiar do lago ou nos precipitar no vazio primordial. Apesar das opções parecerem diametralmente opostas, o desfecho será o mesmo: uma queda sem fim, assombrada pelo tormento da eternidade.

Entretanto, naquele dia, Aníadra descobriu a magia da leitura. Enquanto suas patas permaneciam confortavelmente aquecidas pela pedra suavizada pela correnteza, sua alma se lançou aos céus. A monotonia, felizmente, não conseguiu impedi-la. Encontrou-se viajando por novos mundos, experimentando ideias frescas, expandindo horizontes e desafiando suas perspectivas preexistentes. O lago ao seu redor foi momentaneamente esquecido, substituído por paisagens imaginárias e possibilidades incalculáveis, cada palavra revelava um novo caminho a seguir, um novo segredo a desvendar. Aníadra, a ninfa, encontrou na literatura um meio de escapar, mesmo que momentaneamente, da sua condição confinada.

A lenda da menina que sonhava em ser mulher

— Eu sou uma mulher! — afirmou uma menina, e sua voz ecoou pelas paredes confinadas de seu quarto solitário, enquanto seus olhos estudavam o reflexo no espelho antigo. Seu rosto jovem e inocente contrastava com a convicção em seu tom, como se desejasse convencer não apenas a si mesma, mas ao mundo inteiro.

A menina, Adriana, veio ao mundo como fruto de uma noite de paixão imprudente, uma criança nascida de promessas quebradas e beijos roubados sob a luz vacilante da lua. Quando ainda era um bebê envolto em panos, fora deixada à porta de uma casinha modesta de madeira, simples mas mantida com esmero. Após a inocência de sua infância, começou a travessia que se provaria a mais árdua de todas as etapas do seu crescimento: a tumultuada travessia da adolescência.

Na tenra idade de sua juventude, Adriana logo compreendeu que seria obrigada a passar grande parte de sua vida compartilhando um lar antigo com pais que mais pareciam sombras do que figuras paternas, juntamente com um punhado de crianças que preenchiam o espaço da casa com sua mera presença. Este reconhecimento gerou nela um medo profundo, um temor difuso e sem forma, similar ao que aflige aqueles que se debatem com a angústia de não poderem identificar a verdadeira origem de seus receios.

Talvez por isso, encontrava algum consolo em passar longas horas na janela lateral da casa, observando os casais que se beijavam na praça com seus olhos sonhadores. No entanto, ela era ainda jovem demais para entender completamente as complexidades da existência humana. Tudo o que ela via de sua janela lateral, através dos cristais com relevos ornamentados do vidro antigo, era amplificado e distorcido, os detalhes da realidade eram substituídos por um mosaico de ilusões sedutoras. Ela olhava para o mundo através de lentes ilusórias, encantada pelos gracejos sutis e caprichosos de quem inventou a noção de liberdade, ignorante das correntes invisíveis que amarram a todos nós.

A jovem Adriana acalentava o desejo constante de acelerar o relógio do tempo. Nos confins do seu quarto, ela passava horas a fio observando a dança colorida de pessoas na praça além da janela, perdida em devaneios alucinantes: “Como seria maravilhoso participar da vida daqueles que se beijam livremente. A ideia de não mais viver no limbo dos sonhos, de ser notada onde quer que eu vá, é incrível. Serei livre, tendo a opção de escolher onde e por quem serei cortejada.”

Em um dia, Adriana se sentiu tão atraída pela visão além do vidro que as tranças castanhas de seu cabelo roçaram nas frestas da janela, quase como se tentassem alcançar o mundo dos amantes declarados livres. Foi então que ela sentiu, pela primeira vez, o frescor de uma brisa não filtrada por vidros ou cortinas. As pernas de Adriana vacilaram com a emoção, mas ao mesmo tempo um impulso poderoso de fugir da casa e se juntar ao movimento além da janela a preencheu de coragem. A liberdade e a angústia, irmãs siamesas em sua vida, explodiram juntas num maremoto de emoções. Entretanto, antes mesmo que pudesse tomar uma atitude em prol de sua liberdade, a vida impôs seu ritmo natural, acalmando-a e freado seus impulsos mais imprudentes.

Veio, então, uma manhã marcada pela tragédia — uma manhã como tantas outras na vida da jovem Adriana. Ela sentiu uma falta aguda de ar e a convicção assustadora de que seus pais haviam se revoltado contra sua natureza rebelde, e também contra seu desejo de viver em um ambiente tão opressor e hostil para garotas como ela. No auge de seu desespero, a jovem ainda tentou lutar contra a pressão verbal que a expulsava de sua própria casa. A luta só teve fim quando ela percebeu a cruel verdade: ali, nunca seria a senhora de sua própria morada.

Exausta, entregou-se ao domínio do sono, refugiando-se no limbo entre os sonhos de se tornar e os pesadelos de não ser. A menina que sonhava em ser mulher se deixou ser levada pela correnteza dos sonhos, onde os desejos ocultos e as esperanças silenciadas podiam dançar livremente, sem a cruel censura da realidade.

Mesmo com a sensação residual de sua pele ardendo, Adriana abriu os olhos para se encontrar em meio a um espetáculo extraordinário. Momentaneamente, a dolorosa realidade de ser expulsa de sua casa ancestral foi esquecida. Ela se encontrava agora na tão desejada praça. Seu corpo havia se transformado, ostentando lindas curvas que dançavam ao ritmo de seu caminhar, seu olhar era hipnoticamente envolvente e, de repente, ela era a mulher que sempre desejou ser — livre para experimentar a vida como os casais que sempre observou à distância.

Uma onda de sentimentos alegres irrompeu de seu ser, fazendo seu coração bater aceleradamente contra o tecido do vestido. Apressadamente, ela se preparou para o tão aguardado primeiro beijo. Sentindo-se bela e poderosa, deixou que o rubor tingisse suas bochechas, um sorriso que emoldurava covinhas tímidas adornou seu rosto, e, com os pés nas pontas, ela levantou-se para nivelar os lábios com os dele. No entanto, logo antes de fechar os olhos para se entregar ao beijo, seu olhar se fixou na visão da sua antiga casa, escondida entre as árvores no canto da praça. Em um instante, o que deveria ser seu primeiro beijo se transformou em sua primeira fuga.

Não muito tempo após deixar a adolescência para trás e entrar no último estágio de sua vida como mulher adulta, Adriana se viu aos beijos, cercada de casais que passeavam pela praça. A felicidade do momento se desfez como neblina ao amanhecer quando, sentada sozinha em um banco da praça, notou uma garotinha debruçada em uma janela, observando o mundo além de seu refúgio. Era como se estivesse olhando para um reflexo de si mesma — a menina sonhadora, encantada pelas promessas de um futuro fantástico.

Então, um vendaval de saudade sutil varreu seu peito, preenchendo-o com um vazio estranhamente familiar ao que ela sentia durante sua adolescência, presa atrás dos cristais ornamentados. A visão provocou uma reflexão profunda sobre a fase em que agora se encontrava — a última e mais longa etapa de uma vida que, de repente, parecia sem sentido. Sem ter uma perspectiva clara de futuro, sentiu-se angustiada e desejou desesperadamente retornar para casa. Os tons pastéis do entardecer desbotavam em torno dela, tornando o seu anseio ainda mais profundo, tão palpável que quase poderia tocá-lo.

Desde então, todas as manhãs, a mulher adulta se sentava no banco da praça, a poucos passos da janela lateral de sua antiga morada. Olhando fixamente para a estrutura de madeira, com seus cristais reluzentes emoldurados, um nó formava-se em sua garganta, pontilhado de saudades e entristecido por uma melancolia quase tangível. Com uma expressão de tristeza, os lábios tremiam enquanto murmurava: “Agora eu sou uma mulher, mas na minha época, tudo era mais simples, tudo era mais bonito, e todos pareciam felizes.”

Em um dia particularmente sombrio, esgotada pelo peso de seus próprios pensamentos, do frio áspero do banco de pedra da praça, a mulher permitiu que a memória de seu reflexo na janela lateral da casinha de madeira inundasse sua mente. Uma saudade incontrolável tomou conta dela, um desejo ardente de resgatar a visão distorcida e a inocência de sua adolescência. Então, ela lamentou os risos raros e esparsos da jovem que costumava ser: eram risos genuínos, ainda que intercalados com as durezas do cotidiano. Mesmo escassos, aqueles risos eram seus, nascidos da alma e a ela retornavam. “Posso me permitir chorar?”, ela perguntou a si mesma. E, sem esperar por resposta, as lágrimas caíram.

Uma vez mais, a mulher sonhadora sentiu o pavor penetrar em seus ossos. No entanto, ao mesmo tempo, uma vontade voraz de retornar à sua antiga morada reacendeu-se em seu coração. Mais uma vez, a liberdade e a angústia — ainda inseparáveis — surgiram do fervilhar de sentimentos opostos. No entanto, cinco ou seis segundos antes de tomar a decisão de voltar às suas origens, o medo primitivo já tinha tratado de acalmá-la, barrando suas ideias de liberdade e semeando dúvidas em seu pensamento: “Eu sou mesmo uma mulher?” Assim, com a dúvida ainda martelando em seu coração, ela sentiu a sombra da morte pairar sobre ela, assim como todas as outras mulheres que idolatram suas incertezas.

***

Aníadra fechou a última página do livro, e o peso das palavras ecoou em seu peito como um coro distante. Sentia a angústia da jovem protagonista, que ansiosamente almejava a suposta felicidade das mulheres adultas, e a melancolia da mulher que, olhando para trás, via o passado com olhos cor de rosa. “O único tempo que verdadeiramente nos pertence é o presente,” pensou, e colocou o livro cuidadosamente sobre uma pedra grande, meio imersa nas águas misteriosas e taciturnas do lago.

O sol dourado da tarde se despedia do céu e tingia de amarelo a superfície do lago, transformando-a em um espelho mágico que refletia a vastidão do firmamento e a copa das árvores. Ela mergulhou, nadando com movimentos graciosos, então parou, flutuando, e olhou para a superfície. Nela, viu refletida a vastidão do abismo às avessas, a profundidade escondida abaixo da superfície espelhada do lago. A realidade da vida saltou diante de seus olhos, deixando-a em um estado de reverência e temor. Mas, apesar disso, ela hesitou: “encarar o abismo seria insensatez. As meninas têm a capacidade de transcender a sua natureza, mas eu… eu não sou uma delas.”

Aníadra deu um passo atrás, não ousando cruzar a linha que separava a vida tranquila da complexidade que havia descoberto. Ela voltou o rosto para trás, deixando seu olhar se fixar no livro que estava fechado sobre a pedra, seus pensamentos vagos lentamente se desvaneceram como nuvens no céu. Então, ela fez uma escolha, a de abraçar o presente e o que lhe pertencia, uma escolha que a tornava o seu próprio ser.

Com o melhor sorriso que podia conjurar, um que espelhava a serenidade e a decisão de suas escolhas, Aníadra mergulhou novamente nas águas do lago. Mas desta vez, não era uma ninfa sonhadora, mas uma ninfa que aceitava sua realidade e estava pronta para enfrentar o que o futuro lhe reservava. O lago não era mais um simples corpo de água, mas um campo de batalha a ser conquistado, e ela estava mais do que pronta para a luta, para o início de sua verdadeira jornada, no presente, onde a vida acontece.

Eber Urzeda dos Santos

Sobre Meninas e Libélulas

Coleção: Trevas do Eu

“O conto ‘Sobre Meninas e Libélulas’ integra a série do projeto ‘Contos de Urzeda’, selecionados para compor o livro de contos ‘Trevas do Eu’, de Eber Urzeda dos Santos.”

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“Sobre Meninas e Libélulas” é uma obra de ficção, qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência”.


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