Sobre Meninas e rosas é um conto dedicado A Clarice Lispector
Verônica levantou-se devagar e sozinha. Na poltrona do cinema, restavam pipocas e um ingresso solitário rasgado ao meio. Limpou o assento sem esperar que as notícias do dia seguinte a comparassem a um cidadão japonês. Ética era coisa de berço. Com a mão direita, enxugou os olhos antes que eles revelassem seu quadro depressivo e agônico.
— Pouco importa o seu problema mental — diziam as pessoas nas janelas —, o importante é comportar-se como se não tivesse um.
Enquanto esperava o ônibus, acompanhava os gritos das crianças e as mães horrorizadas com o espetáculo da vida. Sentada junto ao meio-fio, uma menina de cabelos longos desenhava, com um tijolo de construção, um sol sorridente. “Desenhar sorrisos é algo muito triste!”, pensou Verônica, no exato momento em que se arrependeu de seguir a prescrição dos doutores da alma: passeios e exercícios físicos.
Desde criança, a dificuldade de se relacionar, de se enquadrar em um determinado grupo fez com que os olhares externos a vissem como um espírito sofredor, ao ponto de desejarem uma fogueira em praça pública, principalmente por seus primeiros poemas ainda na escola primária. Padres e pastores foram chamados, mas, pelo sexo, não conseguiram expulsar o demônio. Apenas a sua fé em Deus e o seu respeito ao próximo foram exorcizados.
Agora, ali, sentada no ônibus que a conduziria de volta à sua pequena cidade, Verônica foi surpreendida por uma pergunta:
— Posso?
Levantou o olhar e viu um jovem rapaz. Antes de responder, ainda lutando contra o sono causado pelo balançar da viagem e pelos buracos da estrada e do espírito, Verônica reparou no título do livro que o rapaz trazia consigo — Laços de Família. “Por Deus: que ser é este que nos dias de hoje ainda lê Clarice Lispector?”, perguntou-se atônita.
— Claro, por favor! — disse ela, sem tirar os olhos do livro, enquanto retirava sua bolsa do lado e a pousava sobre o colo.
— Você gosta de ler? — perguntou o rapaz, olhando-a de lado.
— “A rede perdera o sentido e estar num bonde era um fio partido; não sabia o que fazer com as compras no colo: E como uma estranha música, o mundo recomeçava ao seu redor”, declamou Verônica, evitando olhar diretamente nos olhos do moço, como se quisesse chamar-lhe a atenção, porém, ao mesmo tempo, assustá-lo.
— Uau! Isso é do conto Amor… como você se lembra? — perguntou o rapaz eufórico, contemplando Clarice nos olhos de Verônica.
Ela o olhou, inclinando o corpo levemente para o lado da janela, mas não disse nada, apenas pôs-se a refletir. Para Verônica, Ana, a protagonista do conto, era uma espécie de portal entre a caverna mecânica das sombras e o mundo real. Suas angústias tornaram-se ao menos suportáveis depois que, aos quinze anos, leu pela primeira vez o conto de Clarice. Ao contrário de Ana, que saiu da caverna pela primeira vez ao refletir sobre um cego a mascar chicletes no escuro, Verônica, desde criança, já via a felicidade como um filtro limitador, como algo completamente inútil, por se tratar de escassos instantes de prazer em uma vida constituída, a priori, de dor. Ela sabia que as sombras do interior da caverna eram, de fato, a única possibilidade de vida feliz, porém nunca quis viver na ficção do teatro moderno. Talvez por isso não suportava as pessoas que faziam do mundo um palco, e de si mesmas uma personagem maravilhosa, sem conflitos, entregue à felicidade eterna.
— Oi, sou o Fausto! — disse-lhe o rapaz, demonstrando encantamento ao conhecê-la.
Verônica apenas assentiu com um leve movimento de músculos faciais, mas nada que parecesse um sorriso. Ele estendeu-lhe a mão para selar o ato do encontro, mas ela não demonstrou interesse em pactuar com o momento mais íntimo dos desconhecidos, senão um interesse quase doentio pela mão que segurava firme a bíblia das angústias. Então, tomada por um desejo brusco e primitivo, avançou com as duas mãos em direção ao livro e tomou-o para si, apertou-o contra o peito e suspirou aliviada.
— Você parece-me uma boa pessoa. Não deveria sair por aí empunhando este tipo de arma. Isto aqui, Fausto, enseja a liberdade, e não há nada mais perigoso e incontrolável que a liberdade. — Fausto demonstrou espanto, mas também interesse. — Sabe?! — continuou Verônica — Desde criança fui encorajada a seguir pelo caminho da realidade. Enquanto meus amigos esperavam o Papai Noel no Natal, eu esperava meu pai chegar bêbado a casa com a esperança de um único presente: o de não apanhar antes de ir para a cama. E assim cresci, entre o medo e a esperança. Quando tinha quinze anos, a professora nos deu uma aula de interpretação de texto. Foi a primeira vez que li o conto Amor, de Clarice. À medida que eu lia e relia o texto, eu sentia ainda mais inveja da protagonista, Ana.
A princípio, identifiquei minha própria mãe como o retrato mais fiel da personagem principal do conto. Com a diferença de que a minha mãe, creio eu, não seria capaz de reconhecer a realidade num simples cego a mascar chicletes no escuro ou mesmo em ovos quebrados. Ela tinha sua própria caverna, suas próprias sombras. Se ela era feliz ou triste, nunca saberei ao certo. Mas sei que ela viveu em seu mundo automático: limpava cada vestígio de poeira que se acumulava nos móveis e sorria de qualquer absurdo que nos batia à porta ou nos apresentava os programas televisivos de domingo à tarde.
Fausto observava Verônica acariciar o livro, passando o dedo indicador com cuidado sobre o relevo das letras que o intitula: Laços de Família. De vez em quando, ele a estudava, atento a cada traço e movimento dela, tentando entender o porquê de tantas reflexões críticas, uma vez que sua beleza e outros atributos, tão valorizados pela sociedade atual, permitiriam a ela ter uma visão mais ingênua da vida, sem a necessidade da autoflagelação.
O ônibus aproximou-se da casa de Verônica. Ela agarrou-se à mão de Fausto, e os dois desceram juntos. Caminharam até o portão sem trocar uma palavra ou um olhar. Ela o arrastava, com o coração disparado e caminhava como se não quisesse ser vista. Ele, ao contrário, desejava ser visto por todos. Como uma criança birrenta, atrasava os passos e olhava em volta, mas as janelas vizinhas estavam vazias, era hora do jantar, deixou-se levar.
Ela destrancou a porta com fúria, acendeu a luz, puxou-o para dentro. Levou-o ao quarto e atirou-o na cama. Pegou o livro, folheou-o até encontrar o conto Amor e rasgou apenas as páginas do conto. Logo, atirou o livro com força na parede. Ainda ofegante, mordendo os próprios lábios, sem julgar-se sensual ou comedida, despiu-se sem cuidados eróticos e saltou sobre Fausto. Sentada sobre o corpo do rapaz assustado, Verônica olhou pela primeira vez no fundo dos olhos dele e viu um precipício. Teve medo de cair, mas, por outro lado, sentiu um desejo enorme de deixar-se cair. Foi a primeira vez que experimentou a completa liberdade de escolha, o grau mais intenso da angústia: a vertigem de liberdade de Kierkegaard.
No outro dia, Verônica acordou muito cedo. Pela primeira vez na vida, notou a desordem de sua casa e a sujeira espalhada por todos os cantos. Antes que a ideia de café pudesse invadir seus pensamentos, foi à cozinha, abriu uma das gavetas do armário e viu um objeto que antes era a razão de seu temor, mas que, por algum motivo desconhecido por ela, tornou-se seu mais fiel companheiro a partir daquele dia. Era apenas uma flanela de limpeza multicolorida. Pegou-a com cuidado e afagou todos os móveis de sua casa, até que mesas, estantes e armários refulgissem suas vergonhas pelo brilho meramente ilustrado.
Verônica, hoje, passeia pela praça do centro da cidade sorrindo. Seu riso tresloucado lembra as crianças que desenham o sol no asfalto e corações nos muros. Ela faz selfies divertidas, cheias de vida vazia, para logo publicá-las em suas redes sociais, com os dizeres: “simplesmente feliz”. Não obstante, ao andar pela cidade, evita os cegos a mascar chicletes. E, ao chegar em casa, cuida para que os espelhos estejam virados para a parede.
As opiniões conservadoras não levam em conta a dor e o contexto da angústia: dizem que Verônica é moça direita. Sobre Fausto, dizem que nunca o viram. Algumas pessoas, do alto de suas janelas, ousam inclusive filosofar:
— Fausto, de fato, nunca existiu: ele é só uma ficção; mais um conto sobre o amor, que nos conta Verônica!
Eber Urzeda dos Santos
Coleção Trevas do Eu
“Sobre Meninas e Rosas” é uma obra de ficção, qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência”.
FAQ sobre Clarice Lispector e o conto “Sobre meninas e rosas”
1. Quem foi Clarice Lispector?
Clarice Lispector foi uma renomada escritora e jornalista brasileira, nascida na Ucrânia em 1920 e naturalizada brasileira. Ela é conhecida por sua escrita introspectiva e psicológica, explorando temas como a identidade, a existência e as complexidades da alma humana. Suas obras mais famosas incluem “A Hora da Estrela”, “Laços de Família” e “A Paixão Segundo G.H.”.
2. Como Clarice Lispector influenciou o conto “Sobre meninas e rosas”?
“Sobre meninas e rosas” é uma homenagem direta a Clarice Lispector, inspirado pela profundidade e pela exploração emocional característica de seus textos. O conto reflete a introspecção e a sensibilidade presentes na obra de Clarice, especialmente em seus contos e romances que abordam temas como a angústia existencial e a busca por significado.
3. Qual é a relação entre o conto “Sobre meninas e rosas” e o romance “As rosas ao pé de minha janela”?
“Sobre meninas e rosas” é um dos contos que serviu de inspiração para o romance “As rosas ao pé de minha janela”. O conto explora temas e emoções que foram expandidos e aprofundados no romance, criando uma conexão literária que enriquece a narrativa e proporciona uma compreensão mais ampla dos personagens e suas jornadas emocionais.
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Bem do jeito que a gente gosta: um conto
Misterioso no começo, envolvente no meio e surpreendente no fim! A personagem é de uma verdade tão palpável, que passa a habitar nossa reflexão por um bom tempo depois
da leitura. Uma belíssima homenagem a Clarice🫶
Olá, Rosa!
Seja muito bem-vinda ao nosso espaço literário! Fico imensamente feliz em saber que o conto tocou você dessa forma. É exatamente esse o objetivo: criar personagens que nos envolvem e nos fazem refletir.
A sua percepção sobre o mistério, o envolvimento e a surpresa ao final é um grande elogio para mim. E mencionando Clarice, só posso dizer que é uma honra tentar capturar um pouco da profundidade e da intensidade que ela trazia às suas histórias.
Espero que continue a nos acompanhar e que outros contos possam também deixar marcas em suas reflexões.
Um abraço literário,
Eber Urzeda dos Santos