A vida espelhada de Áivil

A vida espelhada de Áivil - Contos de Urzeda

Descubra “A Vida Espelhada de Áivil”, uma emocionante narrativa de crescimento e autodescoberta, no projeto Contos de Urzeda. Mergulhe em histórias que exploram o simbolismo e a resiliência humana. Boa leitura!

(Ibirajuba-PE, dezembro de 2002)

Numa tarde quente, Áivil, a pequena e pensativa menina, encontrou abrigo sob a sombra fresca e acolhedora de uma robusta palmeira, plantada à margem do açude da cidade. Este lugar, marcado por contrastes, era situado na modesta e calorosa Ibirajuba, uma cidade do interior de Pernambuco, cuja paisagem árida estava tingida com tonalidades de ocre e sépia, reflexos de uma estação seca. Nesta tarde em particular, o céu se estendia como um cobertor azul-turquesa acima dela, com nuvens esparsas que se assemelhavam a manchas de algodão-doce penduradas no infinito. Esta seria, contudo, sua última tarde na cidade.

Ao se acomodar, Áivil abaixou-se, os joelhos sujando-se com o pó avermelhado da terra seca, e recolheu duas pequenas pedras. Elas eram ásperas ao toque, com a rugosidade dos anos em cada sulco e marca. Contemplou-as por um momento, pensando em lançá-las ao açude como se fossem símbolos de seu próprio desejo de liberdade. No entanto, pensou melhor. A água do açude, espelhando a vastidão do céu azul, era um bem inestimável, o motivo principal da agridoce despedida e da tristeza profunda que lhe pesava no peito.

Ainda muito jovem para deliberar a própria vida, Áivil se viu obrigada a partir, carregando em sua pequena mala de tecido gasto nada além de uma esperança utópica de felicidade e a angústia dilacerante de não poder ser, por circunstâncias que lhe eram impostas, leal aos seus desejos e sonhos mais íntimos.

Havia, no entanto, uma parte intrínseca de si que resistia à partida. Talvez fosse o medo das figuras imponentes que eram os donos das águas e das terras. Figuras sombrias que exploravam a sede, a fome e o dízimo dos cidadãos indefesos. A fragrância de seu lar, uma mistura única de terra seca e flores silvestres murchas, enchia suas narinas enquanto se levantava, decidida a enfrentar o desconhecido.

Guardando as pedras no bolso esquerdo de seu jeans desgastado e macio, ela alimentava o sonho — um tanto ingênuo, um tanto corajoso — de que essas pedras se transformariam em alianças preciosas quando, finalmente, pudesse tocá-las novamente com o dedo anelar da mão esquerda. Um gesto que simbolizava sua intenção de reconciliar os sonhos inocentes de uma menina com a dura realidade que aguardava a mulher em que ela se tornaria.

Com a retirada gradual do sol, que parecia um dourado e flamejante monarca dando adeus ao seu reino, Áivil desistiu do confinamento das calçadas quentes. Ela caminhava agora pelo meio da rua, despreocupada, sem dar a mínima atenção para o tráfego. A rua estreita e pouco movimentada, antes incandescente sob o sol abrasador, agora parecia tranquila e acolhedora, embora ainda retivesse o calor residual do dia.

Chegando à Praça Agamenon Magalhães, um espaço verde e vital no meio da cidade deserta, parou diante da imponente Igreja de Santo Izídio. A praça, normalmente um oásis de calma e serenidade, estava silenciosa e vazia naquela hora, e a única testemunha de sua presença eram as muretas dos canteiros pintadas em verde-amarelo que pareciam fazer parte de um mural urbano desbotado.

Levantou os olhos para a igreja, uma estrutura antiga e imponente que parecia ter assistido ao passar dos anos com uma paciência estoica. Das três portas pesadas e ornamentadas, apenas a do meio estava aberta, como se estivesse convidando-a a explorar os mistérios escondidos lá dentro.

E, nesse momento, uma mulher deslumbrante, trajando um pomposo vestido de noiva, surgiu da igreja, como uma aparição celestial. O vestido, um emaranhado de rendas e cetim, refletia a fraca luz do sol poente, tornando-a quase sobrenatural. A noiva solitária estava pronta para enfrentar o mundo, mesmo sem a presença do padre, dos coroinhas, dos convidados que normalmente jogam arroz, dos padrinhos, das damas de honra, dos pajens e, o mais estranhamente, do noivo. Nesse espetáculo de solidão e bravura, Áivil não pôde deixar de sorrir.

Ela, então, colocou a mão esquerda no bolso de seu jeans, sentindo a textura familiar das pedras. Parecia que o anel de noivado e a noiva estavam lá, em seu bolso, à espera de um milagre.

Continuando a desafiar as convenções da vida prática, Áivil começou a girar pela praça, seus movimentos em passos duplos lembravam os de uma dançarina de valsa, e seu vestido rodopiava como um manto de alegria. Depois de algum tempo, seus olhos se fixaram em um jovem que se aproximava com um sorriso estampado no rosto.

— De que ris? — questionou ela, com uma pitada de impaciência em sua voz.

Ele, com olhar encantado e brilhante, respondeu: — Não estou rindo, menina! Não vê a diferença? Não é um riso, é um sorriso, visto que não é cômico, senão apaixonado.

Por um momento, Áivil considerou dar um nome ao rapaz que sorria apaixonado, mas depois se deteve. “Melhor não, melhor me calar, melhor dançar”, decidiu silenciosamente. Optou por permitir que o jovem caísse no esquecimento, assim como a solitária noiva da igreja. Dessa forma, ela continuou sua valsa melancólica, rindo amargamente de suas fantasias românticas e sorrindo de maneira resignada para a finitude do precioso tempo que lhe restava.

O desgaste começou a se instalar em seus ossos, uma fadiga profunda que podia sentir até na ponta dos dedos do pé, especialmente com o aperto dos sapatos novos. A mão esquerda, antes enfiada no bolso, agora alcançou seu rosto para limpar a única lágrima rebelde que ousou rastejar por sua bochecha naquela tarde de despedidas.

Retornando para casa, Áivil fez uma parada na esquina da Rua Professor Alencar com a Emídio José de Melo, onde contemplou a entrada familiar da escola. O edifício, antes um lugar de aprendizado e brincadeiras, agora parecia desolado e vazio. Apoiado nas grades do portão fechado, o jovem da praça reapareceu, mas agora, sem o sorriso apaixonado. Ele apenas acenou (numa atitude pueril), fechou os olhos, esfumaçou-se e foi ter com as nuvens.

Áivil chegou em casa e lançou um olhar sobre o muro de tijolos à vista. Junto à parede, algumas plantas lamentavam a escassa sombra e a ausência do tão necessário deus da chuva. A porta da sala estava aberta, revelando caixas de mudança espalhadas pela casa. Seu pai estava lá, com um olhar distante, perdido em pensamentos sombrios. Sua mãe, ao contrário, parecia irradiar um tipo de alegria forçada, uma máscara para esconder a tristeza que tinha por dentro.

Enquanto isso, seu irmãozinho brincava alegremente com o cãozinho, que seria deixado para trás, alheio à atmosfera carregada que pairava sobre a casa. A menina foi ao quarto para resgatar algumas memórias, mas nada encontrou além de um colchão estendido no chão, preparado para sua última noite ali. “Que seja também o último pesadelo”, desejou ela, em um suspiro de esperança e desespero.

Deitada sob a companhia solitária do luar e das estrelas, cujos brilhos invadiam o seu quarto através da janela desprovida de cortinas, Áivil recordou-se das duas pedras que guardara em seu jeans. Movendo-se cuidadosamente na escuridão, encontrou as pedras onde as tinha deixado. Com um prego que havia encontrado perto de seu modesto colchão de palha, riscou algo nas pedras, uma inscrição misteriosa que só ela entenderia, e as deixou no canto, escondidas entre a parede e o travesseiro.

Seus olhos vaguearam para o teto escuro, um vasto céu interno onde sua imaginação floresceu, transformando a escuridão em um campo estrelado. As estrelas dançaram no breu da noite, movendo-se em padrões que só ela poderia ver. Entretanto, a sua existência pesada logo cobrou seu preço, e os olhos cansados cederam, mergulhando-a em um sono repleto de sonhos e pesadelos gentis, mas persistentes.

Na manhã seguinte, pouco antes de sua partida, Áivil fez um pequeno ritual. Com a pedra em uma das mãos, cavou uma cova rasa no quintal com a outra. Enterrou uma das pedras, um totem silencioso de suas memórias. Observou a cova recém-cavada e sentiu uma pitada de pesar, desejando ter uma flor para adornar a sepultura improvisada de sua preciosa pedra.

Começou a caminhar lentamente, os pés parecendo pesar toneladas a cada passo que dava. Por um momento, hesitou, querendo olhar para trás, para a cova rasa e triste uma última vez. Mas o seu coração estava decidido. Não iria recuar, não iria deixar que os afetos passados a prendessem no lugar. Porque ela sabia, a partir de suas leituras solitárias sob a sombra da gameleira no quintal, que o mundo iria tentar persuadi-la, iria tentar atraí-la de volta. Mas ela estava resoluta em seu caminho.

Áivil inspirou profundamente, enchendo os pulmões com o ar fresco do amanhecer e alimentando sua coragem para o caminho que a esperava. No bolso esquerdo de seu jeans, mantinha uma única pedra, um lembrete palpável e simbólico. Essa pedra, pensou, seria a lente através da qual poderia ampliar sua consciência e visão de mundo sempre que a vida a desafiasse a olhar para trás e a olhar para frente — para a pedra do passado, agora enterrada, e para a pedra do futuro, repousando em seu bolso.

Com essas duas pedras simbólicas, sentiu-se armada contra os emaranhados energéticos de sua juventude que poderiam atrapalhá-la de encarar a vida com a sabedoria e a altivez dos olhos adultos. Estava pronta para aceitar o novo, o desconhecido, e corrigir qualquer desvio que a fizesse perder a sua essência e o rumo na sinuosa estrada da vida adulta. “Talvez, na simbologia das pedras separadas”, pensou Áivil, “eu possa encontrar o conforto necessário, quando a recuperação de minha memória afetiva for meu último suspiro de prazer”. Com esse pensamento, Áivil deu o primeiro passo em sua nova jornada.

***

Um domingo ensolarado abraçou Recife e as praias fervilhavam de vida. O dia encontrou Áivil na areia escaldante da Praia de Boa Viagem. O mar ali, expansivo e majestoso, preenchia seu campo de visão e tocava um acorde em sua alma. Sentiu uma mistura de encantamento diante da imensidão do oceano e de desencanto com a indiferença das pessoas que corriam ao seu redor, absortas em suas próprias vidas e negando qualquer forma de cortesia ou cumprimento.

Com a esperança de introduzir um pouco de humanidade na paisagem, ela se dirigiu a uma senhora de aspecto elegante que passava, vestida em luvas de veludo e um chapéu grande para se proteger do sol.

— Bom dia, senhora! — Áivil cumprimentou, com um sorriso caloroso.

— Bom dia, mocinha! — respondeu a si mesma, imitando com uma pitada irônica o tom polido e distante da mulher que continuava seu caminho sem sequer reconhecer o cumprimento.

Áivil não se abateu. Manteve o sorriso radiante e a consideração para com os outros, qualidades que lhe foram incutidas desde o berço e nas andanças pelas ruas estreitas e pitorescas de Ibirajuba. À medida que amadurecia, mal se dava conta da distância que se estabelecia entre ela e as pessoas ao seu redor, e das mudanças em seu corpo que marcavam a transição da infância para a vida adulta.

A volúpia dos desejos emergentes e o aumento das angústias adolescentes eram como duas forças contrárias que, juntas, enfraqueciam a imagem da velha menina que dançava sozinha na praça e fortaleciam a da nova mulher que emergia, moldada pelas convenções e expectativas da cidade grande.

Como muitas adolescentes, Áivil sentia um impulso forte para transcender, para ir além do que lhe era permitido e conquistar o mundo. Mas, paradoxalmente, via a figura paterna nos jovens que se aproximavam com ares de machismo e isso a atraía. Para os rapazes românticos e delicados, apenas oferecia sua amizade. Era uma dualidade perturbadora: ansiava pela liberdade, mas buscava a proteção dos fortes.

***

Pouco tempo depois, um novo salto em sua vida a levou para São Paulo. Uma cidade de extremos, onde a vida pulsava em um ritmo frenético, e as pessoas pareciam ainda mais distantes de sua realidade e consciência. Olhava ao redor e se via em um formigueiro gigante, uma metrópole onde a vida parecia não ter outro sentido além de formigar incessantemente em prol de algum objetivo distante e de proteger a rainha. As ruas abarrotadas de pessoas pareciam seguir esse padrão sem fim, cada uma com seu papel, seu ritmo, sua direção, num ciclo interminável que era a própria definição de vida na cidade grande.

Não demorou muito para que sua família decidisse retornar a Recife, deixando Áivil diante de uma encruzilhada de escolhas que marcariam a chance de deliberar a própria vida pela primeira vez. A jovem sentiu a angústia pesada das escolhas que moldariam seu futuro, mas, finalmente, resolveu ficar em São Paulo: obedecendo aos anseios aventureiros de uma moça que, até então robusta e resiliente, estava começando a experimentar o doce sabor da autonomia adulta e a sobrecarga das consequências das próprias decisões.

Ela se aventurou nos terrenos do amor, namorou, casou-se e deu à luz a dois filhos, mas só após esses marcos de vida veio a conhecer verdadeiramente o homem com quem compartilhava a vida. Antes, ela o via como uma figura gloriosa e majestosa, um herói perfeito de sua narrativa pessoal, relegando a si mesma ao papel de uma antagonista sombria, uma vilã sem identidade, vagando pelas sombras, capaz de atos impensáveis.

Porém, à medida que a história se desenrolava, o arco das personagens atingiu sua plenitude, e o belo tornou-se feio, como se a máscara do herói tivesse sido arrancada para revelar uma face perturbadora. As atrocidades cometidas por ele, disfarçadas sob o manto da benevolência, rasgaram como facas as vidas de todos os outros personagens da narrativa, desde os principais até os secundários, além de atingir alguns que meramente figuravam na periferia da trama. O mundo perfeito de Áivil estava desmoronando, revelando a realidade sombria por trás das aparências.

Aqueles foram tempos assolados por provações e tribulações: seu nome havia mudado, seu passado estava irreconhecível, e a mulher que ela conhecia havia sido transformada em algo estranho e distante. Envolvida em um redemoinho de emoções conflitantes, entre a agonia de não se reconhecer mais no espelho e o medo insaciável nascido da solidão, Áivil ansiava por recuperar o tempo perdido. Em uma tentativa de resgate, voltou a dançar pela casa, desta vez ao som de sua própria melodia interna, cuidadosamente abafada para não perturbar o sono tranquilo de suas crianças.

Ela tentou sorrir ao espelho, mas a imagem refletida ainda não era da pequena Áivil que um dia fora. Em uma noite, ousou libertar-se do jugo da autoimagem alterada: olhou-se no espelho, vestido colado ao corpo desenhando as linhas exuberantes de sua figura, grandes olhos castanhos realçados por cílios longos e sobrancelhas delineadas com a precisão de figuras geométricas; lábios vermelhos pulsantes, convidativos para um beijo de amor eterno; cabelos soltos caindo sobre os ombros alvos e desnudos. Armada de coragem, saiu para dançar na multidão do enorme formigueiro urbano, desejando quebrar as amarras que a prendiam…

Levou dois longos e exaustivos anos para libertar-se do herói reconstruído daquela noite. Foi necessário derrubar outra personagem, esta ainda mais déspota que a primeira, cuja tirania quase apagou o tênue reflexo identitário que ainda lhe restava.

Foram muitas noites sem dormir, até que, em uma madrugada silenciosa, ouviu um soluço profundo, um som de pesar, e a voz de seus filhos a chamando de mãe como se fosse a primeira vez. Naquele momento, uma lágrima solitária encontrou o caminho até seu raro sorriso que há muito não se via. Ela se lembrou do olhar resplandecente de sua própria mãe, no meio da angústia de deixar a terra natal, e foi inundada por uma força descomunal. Pegou seus filhos no colo e todos eles adormeceram abraçados, unidos em um só amor, em uma única cama.

***

Áivil despertou naquela manhã com uma vivacidade inesperada, como se tivesse sido preenchida com uma energia bruta e primordial. Rumou para o banheiro, onde se deparou com seu reflexo no espelho manchado de vapor, mas o semblante que retornava seu olhar não a satisfazia. Com uma resolução fria e determinada, ela se dirigiu ao quarto, onde arrumou as malas com uma eficiência metódica. Abriu um pequeno baú, já desgastado pelo tempo, de onde retirou um objeto misterioso que, sem demora, acomodou em sua bolsa. A urgência era palpável, e assim, ela foi despertar as crianças.

— Acordem, pequenos, temos de viajar! — disse ela, numa mistura de alegria e seriedade. — Não precisam se preocupar com a escola hoje. Vamos partir agora, mas estaremos de volta na segunda-feira.

Ela conseguiu interceptar as perguntas emergentes dos pequenos, cortando o ar com sua antecipação:

— Vamos para Ibirajuba, minha terra natal. — explicou. — Preciso recuperar algo muito importante.

Depois de algumas horas de voo, eles aterrissaram em Recife. Com rapidez, ela alugou um carro e eles seguiram para o interior. Chegaram a Ibirajuba ao cair da tarde, a pequena cidade banhada na luz dourada do entardecer. Os filhos de Áivil acompanharam a viagem com os olhos arregalados, encantados pela magia das paisagens de Pernambuco. Havia algo nelas que parecia acolhedor, e eles se sentiam inexplicavelmente em casa.

Áivil desceu do carro com a decisão marcada em seus passos. Pediu a seus filhos que a esperassem por um momento. Parou em frente ao portão de sua antiga casa, as placas de ferro desbotadas e a pintura descascada lhe trouxe uma sensação intensa de nostalgia. Ela bateu palmas, o som ressoou pelo ar da tarde. Uma bela jovem surgiu então, materializando-se diante de seus olhos como o reflexo de um lago tranquilo. Elas conversaram por alguns minutos, suas vozes formando uma melodia estranha e cativante. As crianças observavam a mãe a certa distância, apoiada no portãozinho quebrado e desbotado. Para eles, parecia que ela estava falando sozinha, ficaram encantados ao observar seu rosto iluminado pela luz do entardecer e sua figura delineada pelas sombras crescentes.

Áivil adentrou a residência, um sorriso sincero emoldurando seu rosto, após o convite da jovem desconhecida. Como quem conhecia cada canto da casa, ela deu a volta pelo ambiente simples, seus olhos explorando os móveis antigos e paredes desbotadas, e foi diretamente para o quintal. Solicitou à jovem moradora a permissão para cavar, sendo prontamente atendida. Depois de escavar alguns buracos na terra que lhe pareciam familiares, seu rosto iluminou-se ao encontrar o que buscava: dentro de um lenço já decomposto pelo tempo, havia uma pedra. Era a mesma pedra que ela havia enterrado no dia em que deixou para trás sua querida cidade.

Com um sorriso de alívio, ela buscou em sua bolsa e retirou outra pedra que trazia consigo. Ao unir as duas pedras em suas mãos, sentiu uma onda de euforia inundando seu ser. Ela virou-se para agradecer à jovem dona da casa, mas ela havia desaparecido. Áivil levantou-se do chão, sacudindo a poeira de suas roupas, e adentrou a casa novamente pela porta dos fundos, decidida a expressar sua gratidão à desconhecida.

Ao passar pelo banheiro, notou um espelho oval, sua moldura de madeira ligeiramente desbotada e carcomida pelo tempo. Uma curiosidade acometeu Áivil — como seria sua aparência agora que havia reencontrado as duas pedras? Ela se posicionou diante do espelho, seus olhos buscando a imagem que lhe devolvia. Porém, tudo que viu foi um reflexo distorcido de si mesma.

— O que procura? — a voz da jovem da casa abandonada interrompeu seus pensamentos.

Áivil assustou-se, mas continuou olhando para o espelho. Ela se viu olhando nos olhos da jovem, sentindo uma familiaridade surpreendente naquele olhar distante e triste.

— Como você se chama? — perguntou Áivil, com a curiosidade colorindo suas palavras.

— Lívia, minha senhora! — respondeu a moça com uma voz suave e amistosa, parecendo reverberar pelas paredes da casa antiga.

A audição do nome da jovem desencadeou uma cascata de memórias em Áivil. Cenas se desenrolavam como um filme em sua mente, iniciando dos dias atuais e retrocedendo até aquele dia distante em que havia deixado Ibirajuba. Com a luz do entardecer adentrando a residência e iluminando o ambiente modestamente mobiliado e com a reverência de um padre diante do sacro, Áivil tomou as duas pedras em suas mãos e as acariciou suavemente.

— Vai ficar tudo bem, Lívia, — disse Áivil com uma ternura que parecia ressoar pelo ambiente, fazendo os móveis velhos parecerem menos frios, o ar menos pesado — você pode vir comigo agora. Já não estás sozinha, já não estamos sozinhas, você tem a mim e eu a você.

Lívia abriu a mão lentamente, os olhos brilhando enquanto fixava as pedras e os nomes gravados nelas. Uma pedra carregava o nome “Lívia”, a outra, em uma caligrafia enigmática espelhada, ostentava o nome “Áivil”. Ela sorriu, um sorriso que floresceu como a primeira luz do amanhecer, fechou os olhos e se deixou envolver por um sentimento arrebatador de compreensão. Quando os reabriu, estava cara a cara com seu reflexo no espelho. Olhava para uma mulher linda, de olhos marejados, mas com um sorriso cativante que irradiava felicidade.

Lívia, renovada, deixou a casa pela primeira vez como adulta, os raios do pôr-do-sol tingindo sua silhueta de dourado. Ficou atônita ao conhecer — ou seria melhor dizer reconhecer — seus filhos, que esperavam ansiosamente por ela. Antes de entrar no carro, beijou cada um com um amor profundo e avassalador, como se estivesse imprimindo em cada beijo toda a emoção do primeiro encontro pós-parto.

Ao acomodar-se confortavelmente no banco de couro do carro, ela ajustou o espelho retrovisor e encontrou seus próprios olhos encarando-a de volta. Uma onda de satisfação percorreu seu corpo quando apreciou o sorriso refletido em seu rosto, a alegria brilhante em seus olhos. A visão de si mesma, não mais como um eco do passado, mas como uma protagonista de seu próprio presente, preenchia seu coração com uma euforia indescritível. Com um sorriso que brilhava com a intensidade do luar, ela murmurou para o reflexo que devolvia seu olhar. Suas palavras, embora sussurradas, carregavam o peso de mil promessas, a promessa de um novo começo e de uma existência recriada:

— Seja bem-vinda ao nosso mundo, Lívia. Recomecemos!

Eber Urzeda dos Santos

A vida espelhada de Áivil

Coleção: Trevas do Eu.

“Esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência”.


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