A monstruosidade de Tucuruí: consciência vs. inconsciência

Embarque na jornada sombria de “A monstruosidade de Tucuruí: Consciência vs. Inconsciência,” um conto de horror e suspense que desvela os mistérios ocultos na usina hidrelétrica de Tucuruí. Explore a tênue linha entre a realidade e a fantasia, onde lendas antigas ganham vida e o confronto entre a consciência e a inconsciência ameaça destruir tudo o que conhecemos. Prepare-se para um relato arrebatador que desafiará sua percepção e mergulhará você em um mundo onde o inexplicável e o racional se entrelaçam de maneira sinistra.

Contos de Urzeda - A Monstruosidade de Tucuruí
Contos de Urzeda – A Monstruosidade de Tucuruí

Contos de Urzeda apresenta: A monstruosidade de Tucuruí – Consciência vs. Inconsciência, um conto de Eber Urzeda dos Santos

Dedicado a Hertes M. Farias

— A menina correu o máximo que pôde, mas seus pés ensanguentados, suas pernas trêmulas e seus pulmões sufocados a fizeram cair. Antes de entrar em estado de choque, seus espasmos se multiplicaram ao sentir a presença do predador. De repente, ela ouviu uma canção suave e sentiu o peso do mundo sobre seus ombros. Seus olhos, piscando devagar, quase como se transcendesse para uma parte de si até então desconhecida, desvaneceram lentamente, como no instante em que o espírito se desprende do corpo e vagueia na confusão dos sonhos. Aos poucos, seu ser se dissipou, e creio eu, foi ter com Deus. — disse o jovem bêbado.

As noites em Tucuruí

Ao cair da tarde, a rua paralela ao Rio Tocantins, próxima ao cais da cidade de Tucuruí, no Pará, rapidamente se esvaziava. Portas e janelas eram fechadas, trancadas e ungidas com água benta, ditando o ritual do entardecer. Homens, mulheres, idosos e crianças se ajoelhavam em círculo, com uma vela acesa e uma cabeça de peixe ao centro.

Somente um jovem bêbado, triste e cambaleante pela rua ribeirinha, assistiu à cena monstruosa. Encorajado pela cachaça barata e pelas moedas prometidas, narrou — de olhos fechados, para não esquecer os detalhes — o caso da menina do cais:

— Enquanto a sombra da noite envolvia a cidade, um vulto, camuflado entre as brumas noturnas, de formas monstruosas e opacas, ajoelhou-se sobre o corpo da moça paralisada e… acreditem, começou a murmurar uma canção de ninar! — disse o ébrio contador de histórias, antes de abrir os olhos para reclamar as moedas.

Alguns forasteiros, trabalhadores da Usina Hidrelétrica de Tucuruí, insultavam o rapazinho bêbado: “Mentiroso descarado”. Riam suas gargalhadas debochadas e cuspiam com desprezo na velha colcha de retalhos daquele que, para eles, não passava de um ficcionista movido a álcool. O moço bêbado, indiferente aos julgamentos, sorria afável e repetia em silêncio: “O corajoso enfrenta o inevitável, mas o covarde se deixa alienar pelo medo. Daí o riso fácil, eles mal conseguem enfrentar o espelho. Pobres diabos!”. Porém, conhecedores das lendas, os ribeirinhos da cidade não ousavam zombar do jovem morador das calçadas.

Os olhares pelas frestas das janelas eram evitados a todo custo, assim como qualquer som que pudesse vibrar as paredes de tábuas. Depois do crepúsculo, restava o silêncio. Ribeirinhos atentos: mãos aos ouvidos, respiração lenta, olhos fechados e a esperança do dia seguinte, da manhã libertadora, dos raios do sol refletidos nas águas do rio, a anunciar o espetáculo da vida e a possível sacies do pescador de almas.

Sarah

Assim como eu, Sarah era nova na cidade. Mudou-se para Vila Permanente — uma vila projetada para os funcionários da hidrelétrica local — e matriculou-se na escola da vila. A princípio, tímida, demorou a fazer amigos. Um dia, na saída da escola, estávamos conversando sobre um assunto delicado próximo ao portão. Ao passar por nós, Sarah percebeu que o tema era a lenda do lago da usina. Ela diminuiu o passo e logo parou. Fitou-me por um longo tempo. Notei seu olhar, mas fingi indiferença. Ela observou os outros garotos da turma e percebeu o incômodo geral relacionado ao assunto: a maioria mantinha os olhos dispersos, mas os ouvidos atentos, como quem está pronto para fugir ao menor sinal de perigo. Era assim que os ribeirinhos viviam. Ser arisco era questão de sobrevivência.

— O que é o mito do lago da usina? — perguntou Sarah, surpreendendo-nos e deixando-nos ainda mais em estado de alerta.

— Não é um mito, é uma lenda! — disse Pedro, o professor de História, ao sair pelo portão da escola e segurar a mão de sua filha, Lívia. — Venha comigo, anda!

Os outros alunos abaixaram as cabeças, inclusive eu, e nos dispersamos sem protestos nem despedidas. Sarah veio em minha direção, segurou meu braço e me puxou para um canto próximo ao portão. Surpreso com a atitude, olhei para a mão dela, que continuava me segurando firme. Em vez de soltar, ela apertou meu braço com mais força.

— Espere, por favor! — pediu, tentando esboçar um sorriso. — Preciso da sua ajuda. Você é o Fantasminha, não é?

Diante do encantamento por Sarah, relaxei os ombros. Senti uma leveza nos músculos e uma serenidade na alma que há muito não experimentava. Achei que fosse graças ao olhar enigmático da novata. Coisas misteriosas sempre me fizeram bem. No entanto, estranhei que ela soubesse meu apelido dos tempos de criança em Hidrolândia. Mas, como eu mesmo assino “Fantasminha” nos cadernos e deveres de casa, o estranhamento logo se dissipou. “Talvez, ela tenha lido meu apelido por aí. Coisas do acaso”, pensei. Nunca fui popular entre as meninas, embora despertasse a curiosidade delas. Talvez por eu ser um menino estranho, digamos, exótico.

— Sim, sou o Fantasminha, muito prazer!

Demos as mãos e, impulsivamente, beijei-lhe o rosto. O perfume de Sarah inundou minha alma. A brisa vespertina vinda das comportas da usina, misturada aos aromas doces do rosto dela, deixou em meus lábios um orvalho aromático e apaixonante.

— Você disse que precisa de ajuda, mas ajuda em quê? — perguntei, tentando disfarçar a inquietação que sentia.

— Sabe o que é? — Sarah fez uma pausa e olhou para baixo. — Não sei se você percebeu, mas eu me sento ao lado de Lívia. Nestes três dias em que fui sua colega de mesa, notei que ela nunca presta atenção nas aulas. Além disso, ela tem o hábito de rabiscar o caderno com a frase: “o mito do lago da usina”. Até aí, tudo bem! Mas hoje, eu a vi com um estilete desenhando uma figura monstruosa na mesa. Aproximei-me e perguntei o que era. Levei um susto quando ela se virou: Lívia tinha os olhos esbranquiçados, vazios. Achei que ela estava brincando de virar os olhos, mas percebi que era algo mais sério quando ela olhou para mim como se não me enxergasse, como se eu fosse transparente, sabe? Logo depois, ela balançou a cabeça e seus olhos voltaram ao normal. Mas reparei que sua respiração ainda estava muito acelerada e gradualmente foi ficando ofegante. Ela parecia confusa, como alguém recém-saído de um transe. Fiquei com medo e me afastei um pouco.

Sarah me contava o ocorrido enquanto caminhávamos em direção ao centro comercial da vila. Eu olhava para o chão, evitando o olhar inquisitivo da garota.

— Então, Fantasminha — continuou Sarah —, quando saí pelo portão, ouvi vocês mencionando algo sobre o mito do lago. O que é o mito do lago da usina? Por favor, eu preciso saber. Confesso que estou com medo e penso até em contar aos meus pais para que eles venham à escola. Talvez eles consigam descobrir o que está acontecendo aqui.

— Não, não faça isso! Melhor que ninguém saiba de nada! — respondi, levantando a cabeça rapidamente para encará-la.

— Então me conte, eu tenho de saber! — insistiu Sarah, parando na minha frente. Ela pegou minhas mãos e as acariciou. Sentindo o peso dos meus próprios braços, acabei cedendo.

— Tá bom! Mas prometa que isso ficará só entre a gente. — eu disse, ainda relutante, mas incapaz de resistir ao apelo daquela menina encantadora.

— Claro, pode confiar! — disse ela, e continuamos de mãos dadas pela calçada.

Estávamos próximos ao supermercado da vila quando vimos o professor Pedro saindo sozinho pela porta principal. Ele carregava algumas sacolas, a cabeça levemente inclinada para o chão, olhando para os lados com desconfiança. Paramos entre duas árvores e o observamos entrar em seu carro. Após dar marcha à ré, ele saiu cantando pneus com uma velocidade incomum para um estacionamento, passando muito perto dos nossos pés. Olhamos para dentro do carro e vimos Lívia. Ela estava com a cabeça escorada na janela do passageiro, com as mãos nos ouvidos e os olhos fechados.

— Meu Deus! Temos de ajudá-la! — exclamou Sarah, já me puxando pela mão. — Onde ela mora? Você tem de me dizer!

Eu sentia a mesma compaixão de Sarah, mas o medo me dominou. Num gesto instintivo e brusco, soltei minhas mãos das dela e me inclinei levemente para trás, hesitante em seguir adiante. Sabia que o perigo não era apenas para mim, mas também para ela, que ainda desconhecia os detalhes da lenda. Sarah, percebendo que eu tentaria dissuadi-la, me pressionou contra uma das árvores e, com o dedo indicador, tapou meus lábios, impedindo-me de falar.

— Você tem de me levar à casa de Lívia. Ela não está bem, e você sabe disso! Não é hora de ser um bundão, um covarde! — disse Sarah. Ela então puxou bastante ar e fechou os olhos. Depois de exalar lentamente, com um tom melancólico, acariciou meu rosto por um momento e me beijou. Eu, ainda com os olhos abertos, comecei a tremer, mas logo me deixei levar e fechei os olhos devagar.

Naláh

Caminhávamos pela Rua Minas Gerais e logo chegamos à Rua Chile. Enquanto andávamos de mãos dadas, eu pensava no beijo e em como seria bom repeti-lo; já Sarah, pelo seu semblante assustado e olhar distante, parecia presa aos pensamentos sobre os olhos assombrosos de nossa colega de classe. Ela conduzia o ritmo da caminhada. Eu me sentia levado, como num passo de valsa, por uma dessas dançarinas que parecem ter plumas nos pés e um toque leve e afável.

Ao chegarmos à Rua Canadá, apertei a mão de Sarah e fiz um movimento brusco. Paramos. Olhei para os lados, sem saber ao certo qual direção seguir. Eu só havia ido à casa de Lívia uma vez, acompanhando-a com alguns amigos depois de uma matinê no clube da vila. As casas da vila eram projetadas para separar seus moradores por classes sociais. A região onde ficava a casa dos professores era a mesma destinada aos operários da hidrelétrica, com casas todas iguais, feitas de tábuas e bastante modestas. Com dificuldade em identificar a casa de Lívia, atravessei a rua para observar melhor os detalhes das casas. Foi então que me lembrei de onde ela morava: ao avistar uma casa que me era familiar. Era a casa de Hertes, antigo vizinho e ex-namorado de Lívia. Ele, assim como toda a sua família, havia desaparecido da cidade sem deixar rastros; ninguém jamais soube informar o paradeiro da família Jung.

— É aquela casa ali! — disse eu, quase gaguejando, fazendo gestos imprecisos. Toda aquela história estava descompassando minhas emoções. Eu já nem sabia ao certo como me sentia.

— Tudo bem, vamos até lá! — Sarah me puxou pelo braço, e contornamos a casa para entrar pelos fundos do quintal.

Pulamos uma cerca de madeira pontiaguda e invadimos o terreno. Caminhamos agachados junto à parede, procurando o quarto de Lívia. Quando avistamos a garagem e não vimos o carro do professor, a tensão pareceu diminuir um pouco, mas logo voltou com força ao ouvirmos um choro pesaroso, seguido de soluços. Sarah quis espiar pela janela, mas antes coloquei a mão em seu ombro e sussurrei:

— Tenha cuidado, Sarah. Não sabemos o que ou quem está lá dentro.

Sarah arregalou os olhos, recuou os ombros e disse:

— Como assim “o quê”? Esse choro só pode ser de Lívia. Não é “o quê”, é “quem”: é uma pessoa, é a Lívia.

— Não é bem assim! — retruquei. — Sabe o mito do lago da usina? Pois é, tem a ver com a Lívia e o pai dela.

Sarah mordeu os lábios e olhou para baixo. Logo, ela me agarrou pela camiseta e me arrastou pelo quintal. Nos escondemos debaixo de uma casinha de madeira em um dos cantos do jardim. A casinha, velha e abandonada, era sustentada por quatro vigas de madeira, com um escorregador vermelho desbotado pelo tempo de um lado, e uma escadinha com os dois primeiros degraus quebrados do outro.

— O que é o mito do lago? Vamos, conte-me tudo! — disse ela, impaciente.

— Não é um mito. Segundo o professor, é uma lenda: uma narrativa transmitida oralmente pelas pessoas para explicar acontecimentos sobrenaturais.

— Tudo bem, mas dá pra ser menos nerd comigo? Não precisa me explicar a etimologia da palavra agora. Quero saber sobre a lenda, do que se trata essa tal lenda do lago.

Percebendo a impaciência de Sarah e preocupado em escolher as palavras certas para não a assustar ainda mais, continuei:

— Bem, segundo a lenda, durante a formação do lago para a construção da usina, famílias inteiras de ribeirinhos, além de algumas tribos que habitavam a região, foram expulsas sem qualquer indenização ou projeto que compensasse a brusca mudança de vida. Depois de muitos conflitos com a polícia e o desaparecimento de muitos pais de família e guerreiros indígenas, as famílias e as tribos resolveram deixar a região. Somente um velho pajé ficou para adverti-los sobre a guardiã do Rio Tocantins: Maramou. Ela costumava afogar os homens que não respeitavam o rio ou enviava seu cão-das-águas para capturá-los e aprisioná-los o ser.

— Espera aí, calma! Aprisionar o ser… o que isso significa? — perguntou Sarah, tentando compreender os absurdos narrados.

— Como disse o próprio professor Pedro — fiz uma pausa, tentando formular melhor as ideias para simplificar a história —, o cão-das-águas aprisiona a consciência do homem, deixando-o viver apenas com as pulsões do inconsciente. Isso significa que o homem atacado perde a razão, ou seja, ele perde as experiências que percebia pela razão, além das lembranças e das ações intencionais. A partir desse momento, sua percepção do mundo depende apenas das forças do inconsciente. O novo homem é regido pelo instinto de vida, que se refere à autopreservação, e pelo instinto de morte, que é uma força destrutiva, capaz de se voltar para dentro de si.

Notei que Sarah tentava entender; seu olhar estava distante enquanto brincava com as tranças do cabelo, enrolando-as nos dedos e passando-as pelos lábios. Percebi que precisaria ser mais claro. Tomei fôlego e continuei:

— Eu não sou tão nerd assim para entender tudo isso e já sair explicando. O que fiz foi decorar tudo o que ouvi por aí desde que cheguei à cidade. Além disso, durante os encontros para aquele trabalho em grupo depois da aula do professor Pedro sobre a bendita lenda do lago, gravamos a aula em vídeo e a transcrevemos durante as reuniões. Eu li e reli umas trezentas mil vezes, por isso tenho tudo decorado. Se você ainda não entendeu, vou te dar um exemplo que pode ajudar: sabe os loucos… ou os bêbados, que de tão bêbados parecem loucos? Pois é: a gente não entende o que eles dizem ou fazem porque estão, temporariamente, regidos pelo inconsciente. Eles falam e agem conforme as pulsões do inconsciente. Mas como a gente interpreta as coisas que eles dizem ou fazem a partir do nosso consciente, nada do que eles falam ou fazem faz sentido para nós, porque não estamos sintonizados no mesmo canal.

— Tá bom! Entendi essa parte, mas… o que isso tem a ver com o mito, ou melhor, com a lenda do lago da usina?

— Já vou chegar lá! — disse, tomando um tempo para reorganizar as ideias. — O último remanescente das terras, onde hoje é o lago da usina, era um pajé que vivia em uma pequena ilha do rio. Ele decidiu esperar o homem branco ali, numa tentativa de salvar a pequena ilha onde estavam enterrados os restos mortais de várias gerações de sua tribo. Quando avistou homens chegando num barco da polícia, ele sorriu e acenou. Na mão, tinha um adorno feito de ossos de lebre e cascos de jabuti, para presenteá-los. Ao verem o adorno, os policiais pensaram que era uma arma e o alvejaram. O velho índio caiu no lago, e por um instante, fez-se silêncio. O barco se aproximou do corpo boiando na água serena, e todos cumprimentaram o atirador: “Belo tiro, soldado”. Eles riram em júbilo e deram alguns tiros para o alto, comemorando o sucesso da expedição e a retirada de todos que molestavam as intenções do Estado.

Sarah estava imóvel, mas atenta a cada detalhe do que eu dizia. Apesar do calor, sua pele ficou áspera, e os arrepios a fizeram se aconchegar junto ao meu corpo. Naquele momento, eu mal notei ou julguei seu gesto. Minha mente estava fixa na lenda, mas com uma vontade imensa de me livrar dela. Continuei:

— Durante a comemoração, a tropa percebeu que o barco se movia de forma estranha. Ficaram em silêncio e observaram as mudanças ao redor: as águas, antes tranquilas, começaram a formar ondas cada vez maiores. Os policiais largaram suas armas e se agarraram às laterais do barco. Com o tempo, as ondas começaram a invadir a embarcação, e eles avistaram a formação de um redemoinho. Enquanto todos os soldados acompanhavam horrorizados o crescimento do turbilhão ameaçador, uma criatura emergiu da água e saltou para dentro do barco. Todos os soldados ficaram imóveis, como se estivessem hipnotizados, só conseguindo mexer os olhos para acompanhar os movimentos lentos e controlados de Naláh, o cão-das-águas. O animal se posicionou no centro e girou o corpo lentamente, encarando cada soldado e, veja só, começou a rosnar. Mas agora vem a parte intrigante da lenda: o rosnar do cão-das-águas era como um canto suave, como as canções de ninar.

— Que monstruosidade! — exclamou Sarah, enquanto pegava meu braço esquerdo e o colocava sobre os ombros. — Mas o que isso tem a ver com Lívia?

— Realmente, é algo monstruoso! — respondi vagamente. Tive que me esforçar para voltar a focar na lenda de Tucuruí. Respirei fundo, juntei as mãos, entrelaçando os dedos para envolver Sarah em um abraço carinhoso, e continuei: — Ainda segundo a lenda, Maramou, a guardiã do rio, lançou uma maldição sobre a região do lago: todo ano, ela enviaria Naláh para aprisionar o ser de dois jovens moradores de Tucuruí, logo após o décimo quinto aniversário deles. Na simbologia das antigas tribos do rio, essa é a idade em que o homem deixa de ser filho da terra para tentar conquistá-la. E Lívia — assim como nós — acabou de entrar nessa fase. Nosso grupo, o que estudou a lenda, percebeu que Lívia começou a se comportar de maneira estranha desde o aniversário dela. Tentamos conversar com ela sobre isso, mas o professor Pedro sempre aparecia e nos afastava, exatamente como fez hoje. Acho que ele se arrependeu de ter dado aquela aula sobre mitos e lendas. Lívia chegou a nos dizer para esquecer toda aquela história maluca. Ela estava com alguns problemas em casa, e a lenda não a deixava se concentrar em nada. Achamos estranho porque, antes do aniversário, ela era como qualquer outra garota da escola, além de estar super empolgada com as novas descobertas sobre a lenda.

— Não acredito nessa lenda boba! — disse Sarah, levantando-se de repente. — Vamos, temos de conversar com a Lívia. Quero saber por que ela está tão estranha e ver se podemos ajudá-la.

Caminhamos em direção à porta dos fundos. Sarah bateu com cuidado e chamou baixinho:

— Lívia, Lívia! Sei que você está aí. Preciso falar com você!

Não houve resposta. Sarah bateu um pouco mais forte, e a porta se abriu devagar, sozinha. Ouvimos apenas o ranger das dobradiças enferrujadas. Ela pegou minha mão, e entramos na casa devagar, calculando cada passo e observando tudo com atenção. Fomos em direção ao quarto de Lívia. Notei cada detalhe da casa: as paredes estavam repletas de fotos do torneio de pesca de Tucuruí. Em todas elas, o professor Pedro estava de pé em uma lancha pequena, segurando enormes peixes.

Ao chegar ao quarto, Sarah bateu na porta com as costas do dedo indicador. Aproximou o ouvido direito e ouviu Lívia cantando suavemente. O canto era quase um murmúrio de lamentação. Ela abriu a porta devagar e chamou por Lívia com uma voz serena, para não a assustar. No entanto, ao entrar, Sarah viu que não era Lívia quem entoava a melodia, mas um enorme monstro, muito parecido com um cão gigantesco, coberto por uma pelagem densa. No entanto, seu crânio, liso e dourado, não se parecia com a cabeça de um cão, mas tinha o formato da cabeça de um tucunaré — o peixe típico da região, o mesmo das fotos do professor Pedro.

Entrei logo em seguida e também me deparei com o monstro. A fera tinha as duas patas dianteiras sobre a cama de Lívia. Quando nos viu, cessou o canto, e nos entreolhamos em silêncio. O único som era a respiração de Naláh, que, mesmo dotado de brânquias, respirava pelas narinas, exalando um ar esverdeado e nebuloso. O cão com cara de peixe olhou em nossa direção. Estávamos paralisados ao lado da porta do quarto. Naláh, com uma lentidão absurda, quase hipnotizante, desceu as patas da cama de Lívia, endireitou o corpo e se preparou para o ataque. De repente, Sarah e eu percebemos uma mudança repentina na fisionomia da criatura: de fúria para espanto. Foi então que sentimos algo nos atacar por trás, como um empurrão em nossas costas, e fomos ao chão. O pai de Lívia havia invadido o quarto, empunhando uma escopeta. Em seguida, ouvimos o estrondo de um tiro, uma luz intensa surgiu, e eu desmaiei.

Quando recobrei a consciência, não vi Lívia ou o professor Pedro. Estava em um quarto sem janelas, deitado no chão, vestindo roupas militares e com uma arma ao meu lado. Sobre a cama, uma moça com tranças — usando um pijama de peixinhos dourados e abraçada a um cãozinho de pelúcia — dormia tranquilamente. Sentindo-me zonzo, voltei a desmaiar.

A primeira coisa que percebi ao despertar foi a luz do sol filtrada pelas folhas de uma árvore. Esfreguei os olhos e me vi deitado na calçada de um bar, próximo à Feira Municipal de Tucuruí. O cheiro de peixe fresco vindo da feira me causou ânsias de vômito. Logo, o dono do bar veio ao meu encontro.

— Ei, rapazinho! Acordou, né? Cuidado com o que esse bêbado diz. Ele não bate bem das ideias: olha só pra ele, usa farda e se diz militar. Ele sempre conta a mesma história: de quando ele e seus colegas soldados foram atacados por um cão com cara de peixe. Dá pra acreditar? Um louco perdido!

Passei a mão pelos cabelos, sentindo uma forte dor de cabeça e meus ouvidos latejarem. Não sabia ao certo por quanto tempo havia adormecido, nem como fui parar ali. Tentei me levantar, mas caí diante de uma poça d’água, entre a rua e o meio-fio. Ainda me recuperando da queda, vi um jovem bêbado me encarando de muito perto.

— Ei, você, quer ganhar uma dose de cachaça? — perguntei ao jovem bêbado.

— Claro, doutor! Mas, espera aí, o que tenho de fazer?

— Nada de mais! Só me diga seu nome!

— Cachaça barata! — disse o rapazinho bêbado, e vendo que o nariz de seu interlocutor quase tocava o seu, respondeu, seguro de si:

— Meu nome é Fantasminha, doutor!

Finalmente consegui me pôr de pé. Escorei-me em uma árvore e observei as teias de aranha nas portas do antigo bar da Rua Getúlio Vargas. Olhei ao redor: não havia ninguém, exceto as figuras do jovem bêbado e do dono do bar. Ambos tinham a minha cara, e ambos trajavam vestes militares, aprisionados como fantasmas na água suja da poça. Sorri aliviado. Aquele era apenas mais um domingo qualquer: eu estava sozinho como sempre e consciente como nunca. No entanto, desejei um gole de cachaça, de inconsciência, para me livrar da monstruosidade do mundo perceptível.

Eber Urzeda dos Santos
A Monstruosidade de Tucuruí: Consciência vs. Inconsciência
Coleção: Trevas do Eu

Este conto foi cuidadosamente escolhido e adaptado para compor o romance As rosas ao pé de minha janela, disponível para compra na Amazon. Descubra mais sobre os mistérios de Tucuruí e outros relatos cativantes nesta obra imperdível.

“A Monstruosidade de Tucuruí: Consciência vs. Inconsciência” é uma obra de ficção, qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência”.


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Leia também o conto que deu origem ao romance “As rosas ao pé de minha janela”: O horror de Hidrolândia

A monstruosidade de Tucuruí - Consciência vs. Inconsciência
A monstruosidade de Tucuruí – Consciência vs. Inconsciência

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