O Mistério de Alixa Mabih: A lenda do Delta do Parnaíba

Descubra “O Mistério de Alixa Mabih”, um conto de suspense e terror que mergulha nas profundezas das emoções adolescentes, explorando os perigos da idealização do amor eterno. Ambientado nos manguezais sinistros do Delta do Parnaíba, esta história traz à tona o lado sombrio das paixões juvenis, onde a busca por um amor perfeito pode levar a consequências devastadoras. Perfeito para fãs de histórias envolventes e reflexivas, “O Mistério de Alixa Mabih” é uma leitura imperdível para quem aprecia contos de suspense psicológico e horror.

O mistério de Alixa Mabih - Contos de Urzeda
O mistério de Alixa Mabih – Contos de Urzeda

Contos de Urzeda apresenta: O Mistério de Alixa Mabih – A lenda do Delta do Parnaíba

Naquele crepúsculo de pensamentos sombrios, sentei-me disposto a escrever um poema. Não fosse pelo sangue que parecia jorrar de minha caneta barata, teria conseguido, penso. As manchas da vermelhidão no meu caderno se espalhavam, exalando um odor metálico, mas perfumado, e tomaram a forma do rosto de uma antiga colega de sala: Alixa Mabih. Esse vislumbre pavoroso, como todos os outros a mesclar meu eu poético ao meu eu terrorífico, revelou-se impaciente e intimidador. De fato, senti-me intimidado, pois a caneta, para meu espanto, não era de tinta rubra como nos contornos do rosto de Alixa, mas sim preta e sombria, como a tonalidade das noites frias e nubladas.

Ao som de uma sinfonia lúgubre, orquestrada pelos ventos errantes, levantei-me abruptamente e fechei a cortina improvisada da janela. A luz amarelada do poste, que piscava incessantemente, refletia listras sinistras na parede, como se quisesse me avisar de algo. Era como se alguém, ou alguma coisa, estivesse tentando comunicar-se comigo, mas eu preferi ignorar as mensagens da penumbra. Fechei os olhos, tentando abafar o som distante de passos que pareciam vir de outro mundo. Tudo o que eu queria era lembrar-me de Alixa Mabih, cujo afastamento temporal e espacial exigia de mim um esforço quase sobre-humano de memória e emoção.

Do longínquo 30 de junho de 2002, um dia marcado por uma conquista (que não era minha) e uma perda (que também não era minha), lembro-me, forçado pelas emoções opostas, de nosso primeiro beijo. Aliás, foram dois primeiros beijos, ou, melhor dizendo, um primeiro para cada um de nós. Estávamos em frente à universidade, na Avenida São Sebastião, sentados à sombra agonizante de uma árvore que mal suportava o calor de Parnaíba, no Piauí. O ar estava impregnado com o doce aroma das flores que murchavam, e éramos observados por um domingo inesquecível: Mabih manteve os olhos abertos e os lábios imóveis; no segundo beijo, foi a minha vez. Tanto para ela quanto para mim, o “eu te amo para sempre” que tanto idealizamos desmoronou diante da primeira frustração com as imagens que criamos um do outro. Foi um amor sonhado por semanas, vivido em uma tarde, e sepultado após o segundo beijo. Aos dezessete anos, tudo parece eterno.

Após as férias de julho, voltei ao ambiente escolar e me sentei perto da mesa do professor. Mabih, com seu ar enigmático, ocupou a última carteira à direita da sala. Embora preferisse a companhia dos alunos extrovertidos, sua escolha naquele dia não foi um gesto de rebeldia. Sua solitude voluntária, envolta em uma aura de melancolia, parecia destinada a afastar aqueles que insistiam em exibir uma falsa perfeição. Ela os observava com desdém, como se sentisse pena daqueles que acreditavam que a felicidade tinha algum valor real na vida. Desprezava os sorrisos forçados, as alegrias falsas e passageiras alimentadas por álcool, sexo ou consumismo, tudo isso mascarado pela fragrância artificial do desespero.

Olhei-a por um instante enquanto fingia dispersar o olhar pela classe. Ela, agora ainda mais taciturna do que no momento do adeus, do nosso “amor eterno”, dos dois minutos de intimidade que compartilhamos, parecia submersa em um mar de pensamentos escuros. O silêncio ao seu redor era quase tangível, como se um véu denso de mistério a envolvesse, tornando-a ainda mais inacessível.

— Não sou escrava de ninguém! — Assim respondia a jovem Alixa, sempre que era pedida em namoro ou amizade. A liberdade, conquistada aos gritos e à desobediência, era sua armadura contra os abismos da vida. Para ela, os relacionamentos de cabresto e os hinos cantados na escola não passavam de cursinhos preparatórios para a servidão voluntária. Alixa, uma figura punk, sonhava com o mocinho de gravata borboleta e suspensório: visões de mundo opostas, mas ela seria ela, e ele, ele.

— Ninguém senhor do meu domínio! — Ressoava em sua mente a música das legiões marginalizadas e a filosofia lida às escondidas, pois aqueles (não muito diferentes dos atuais) eram tempos bicudos.

— Enquanto em mim houver algo de humano, lutarei. Lutarei para não ser enganada ou forçada. Ninguém subjugará meus anseios, minha liberdade. — Alixa proclamava em voz alta, parafraseando Étienne de La Boétie, enquanto a luz do sol infiltrava-se pelas frestas da sala, criando um jogo confuso de luz e sombra.

Mas, como todos temos nossos momentos de vulnerabilidade, Alixa aceitou o convite de uma colega para explorar os manguezais do Delta do Parnaíba. E eu, tentando escapar da minha própria escuridão, aceitei o convite de um colega para um passeio de barco. Achei que seria uma boa ideia deixar meu quarto sombrio por algumas horas. Para ela, nada era mais fascinante do que as raízes mórbidas emergindo da lama para tomar sol junto às coisas ditas belas da natureza. Contudo, manipulados por uma brincadeira macabra, ela e eu nos encontramos frente a frente em um pequeno barco a motor, enquanto o vento sussurrava segredos inaudíveis entre os manguezais.

Apesar da pouca idade, Jonas e Lia eram namorados há muito tempo. Lia, a única colega de quem Alixa gostava, era uma garota boca-suja, mas de grande coração. Jonas, meu vizinho e colega de classe, era um rapaz atormentado e rude, mas com lampejos de empatia e honestidade. Todos nós, cursando o último ano do colégio, vivíamos um desequilíbrio de ideias que trazia a impaciência da espera e o medo do futuro.

Foi desconcertante ver Alixa ali, séria, calada, mas estranhamente serena. Ela não parecia se importar, apenas observava as plantas às margens do Rio Parnaíba. Sua atenção foi capturada pela natureza selvagem. Sorria por dentro, um sorriso enigmático, reminiscente da Mona Lisa, enquanto testemunhava a gradual mudança da vegetação à medida que nos aproximávamos dos manguezais. Eu, por outro lado, sofria: angustiado pela sensação de liberdade que o rio me proporcionava, mas também pela desconexão com o mundo ao meu redor.

Paramos em uma ilha e todos descemos. O solo arenoso à margem do rio, salpicado de pequenas conchas e pedras lisas, ia se transformando em barro argiloso à medida que avançávamos em direção aos mangues, onde o cheiro de terra molhada e salgada se misturava ao ar. Diziam que nessa ilha havia um lago de águas cristalinas ao centro, mas as lendas sobre o lago dos mangues, com suas dezenas de versões diferentes, jamais foram confirmadas. O local era evitado a todo custo por pescadores e ribeirinhos que viviam perto dali. Contavam que à noite, gritos misteriosos, parecidos com gemidos, ecoavam pela região, amplificados e distorcidos pelas correntes de ar, como sussurros de fantasmas perdidos.

Alixa foi a única que se sentiu à vontade na ilha. Jonas e Lia se entreolhavam assustados, pulando a cada borbulha que emergia da lama fétida e fervilhante, que exalava um odor pungente e penetrante. Fizemos menção de voltar ao barco, mas Alixa avançou a passos largos rumo ao mangue, com suas raízes e galhos entrelaçados. Ninguém ousou chamá-la de volta. Seguimos em frente para não a perder de vista, mesmo contra os impulsos de sobrevivência que gritavam em nossas mentes.

Tudo parecia estranhamente calmo. Caminhávamos devagar, acompanhados pelo som úmido e sutil de nossos passos no barro. Vez ou outra, atolávamos as pernas no barro frio e precisávamos da ajuda uns dos outros para conseguir escapar e seguir adiante. Menos Alixa. Ela seguia sozinha, movendo-se com destreza sobre as raízes aéreas e galhos retorcidos do mangue, como se fosse uma criatura nascida daquele ambiente sombrio. Desprovida de medo, ela se lançou pela densa vegetação e desapareceu.

Fiquei fascinado pela cena, embasbacado pelo romantismo sombrio do abandono. Contudo, aquele gesto de desprezo não provocou em mim outra sensação, senão… paixão. Voltei a desejá-la como nunca antes. Nesse êxtase, senti o aroma de uma pequena flor amarela e solitária, que desafiava a lama e o tédio, trazendo cor e perfume àquele cenário mórbido, um contraste vívido de vida e esperança em meio à desolação.

Despertei desse sonho lúcido ao ouvir um grito sufocado, um som agudo que rasgava o silêncio da tarde moribunda. Pensei que fosse fruto da minha imaginação, uma resposta aos ecos distorcidos de minha prece aos céus. Mas, para meu horror, virei-me e vi apenas as mãos de Jonas e Lia estendidas para o alto, como se buscassem algo além deste mundo. Seus corpos já haviam sido engolidos pela lama movediça, tragados por um abismo viscoso e silencioso. Incrédulo, assisti à imersão de ambos. Com os dedos abertos e trêmulos, pareciam despedir-se de mim, até que o último sopro de voz escapou da última borbulha de lamento, e eles desapareceram para sempre, deixando um vazio sussurrante no ar.

Na paralisia momentânea, recordei os gritos saltitantes da antiga lenda de horror e, enfim, compreendi: não eram espíritos que habitavam os mangues, mas sim sopros que vinham das profundezas da ilha. Grandes bolhas de gritos comprimidos emergiam, explodindo e lançando ao vento súplicas de lamento, clamores de piedade, um coro fantasmagórico que se misturava ao zumbido dos insetos.

Quando meus movimentos começaram a voltar, fiz o que qualquer covarde faria: segui à procura de Alixa, deixando para trás o cenário terrível, sem considerar por um instante a possibilidade de salvar meus companheiros. Minha única preocupação, além de salvar a mim mesmo, era encontrar aquela que agora era o objeto do meu desejo renovado. Num gesto de desespero, chamei por ela:

— Mabih! Mabih, onde você está? Por favor, responda-me! Mabih…

À medida que o som do meu chamado ecoava pelo manguezal, o número de bolhas que explodiam em lamentos aumentava. Parecia que várias vozes me respondiam em tom sinistro:

— Estou aqui! Venha, preciso de ajuda! Venha, segure minha mão…

Finalmente, cheguei ao centro da ilha ao cair da tarde. A lama do manguezal deu lugar à areia branca e firme, salpicada de pequenas conchas e pedrinhas brilhantes. Alguns metros adiante, avistei um pequeno lago cercado por uma vegetação que não pertencia aos mangues. Eram arbustos de copas arredondadas e caules ressecados, cobertos de musgo esverdeado que exalava um odor terroso e úmido.

Ao me aproximar do lago, a visão aterradora me causou ânsias de vômito e culpa: as águas eram negras e espessas, como petróleo, refletindo a luz crepuscular de forma sinistra. Pequenas ondas se formavam no centro do lago, onde havia algo como uma boca, um buraco que abria e fechava, como se respirasse. As ondas, agitadas, corriam até a margem, arrastando tudo o que encontravam para alimentar a grande boca faminta: desde folhas e galhos secos até pequenas criaturas que passeavam descuidadas pela beira. Era como se as ondas realizassem a busca incessante por alimento para o monstro do lago devorar. Contornei o lago medonho, pisando com cuidado no solo traiçoeiro, sem me descuidar do ronco das águas, temendo ser surpreendido pelas suas ondas traiçoeiras ou pelos segredos que a lenda ocultava.

Depois de caminhar alguns metros, quase sem respirar, avistei Alixa por sobre os arbustos, ainda um pouco distante. Ela caminhava de forma estranha, um andar lúgubre, lento, alheio à realidade, como os zumbis das histórias de terror. Aproximei-me devagar, pisando suavemente sobre a vegetação úmida, evitando fazer ruídos. Alixa, imersa em seu próprio mundo, parecia indiferente ao sangue que empapava suas roupas, manchando o verde ao seu redor. Apenas olhava em direção ao horizonte, talvez esperando o pôr do sol que tingia o céu em tons de laranja e roxo.

Alixa Mabih sentou-se em uma raiz de mangue vermelho. Observou a lama fresca do manguezal naquela sinistra ilha do Delta do Parnaíba, inalando o cheiro de terra molhada e salgada. Parecia fascinada com o andar lateral dos caranguejos que se aproximavam curiosos. Do barro lodoso, surgiam outros bichos, e em segundos, ela ficou cercada pelos famintos crustáceos, que a viam quase como matéria orgânica morta. Seus cliques e movimentos formavam uma dança macabra ao redor dela.

Ainda hipnotizada pela dança dos caranguejos, Mabih sorriu, maravilhada pela última revoada dos guarás, tingindo de vermelho-sangue o crepúsculo nordestino. Olhei para as aves no céu e acompanhei o adeus solar, o canto suave dos pássaros mesclando-se ao sibilar do vento. Aos poucos, a claridade desapareceu atrás dos mangues, deixando-nos à mercê da noite escura e silenciosa. Voltei a preocupar-me com Alixa, mas onde ela sentara para observar a revoada, havia apenas uma montanha de caranguejos, disputando os últimos resquícios do farto jantar.

Fiquei por algum tempo encantado com a cena e fui tomado por uma crise de risos pavorosos, pois em mim já não cabia tanto terror. Do meu subconsciente, emergiram ordens expressas de atenção e perigo, e senti uma necessidade absurda de expelir todo o mal-estar através do riso. Imaginei várias formas de pôr um fim à dor insuportável que me consumia. Eu estava pronto para encarar o monstro do lago. Caminhei sem pensar e entrei na água lodosa e negra, sentindo sua frieza envolver-me como um manto. Busquei os perigos para cessar a dor da alma, não a do corpo, embora soubesse que eram indissociáveis.

Segui sereno e afundei-me aos poucos, ajudado pelas ondas que me abraçavam com carinho, como um amante fatal. Já estava quase no centro do lago negro quando senti as águas borbulhantes cobrirem-me por completo. Mergulhado nas profundezas desconhecidas, ainda com a respiração presa, abri os olhos… e vi novamente as cortinas improvisadas na janela, as listras escuras refletidas em minha parede, além das manchas de vermelhidão no meu caderno, formando, em traços quase vívidos, um rosto que aprisionava meu ser e meu estar: o rosto da única mulher que amei em vida, Alixa Mabih. Dito isso, e vendo o sangue dos meus pulsos se mesclar com a tinta negra de minha caneta, despeço-me: adeus!

Eber Urzeda dos Santos
O mistério de Alixa Mabih
Coleção Trevas do Eu

“Esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência”.

Este é um dos contos que inspirou parte do romance:
As rosas ao pé de minha janela


Gostou do conto “O Mistério de Alixa Mabih”? Deixe sua opinião nos comentários abaixo ou entre em contato com o autor diretamente aqui! Se você acredita que alguém que conhece também vai se interessar por essa história, compartilhe com seus amigos e familiares. Não se esqueça de curtir e seguir nossa página no Facebook e nosso perfil no Instagram para mais histórias envolventes e reflexivas como esta!

Leia também o conto que deu origem ao romance “As rosas ao pé de minha janela”: O horror de Hidrolândia

Você já conhece o Projeto Contos de Urzeda? Siga nossas redes sociais no FacebookInstagramYoutubeLinkedin e Twitter e mergulhe em um mundo de histórias emocionantes e reflexivas! 📚✨

Contos de Urzeda - O mistério de Alixa Mabih
Contos de Urzeda –

Deixe um comentário