Contos de Urzeda apresenta: “O Terror das Marianas”, um conto de Eber Urzeda dos Santos
Tenciono-me a escrever esta carta por temer a morte violenta: a espero já sem outras esperanças. Embora ela tenha me encontrado bailando, não houve qualquer comoção diante do ato primitivo. Acalmo-me, aceito-a e degusto o ar podre e escasso deste cubículo de vida que me resta.
Foi tudo tão rápido: eu cantava, dançava e anotava uma dessas dietas odiosas em meu caderninho de receitas, quando vi um lamaçal tenebroso devorar meu telhado. Lembrei-me logo de minha mãe, aflita e corajosa, a esconder-me debaixo da mesa e a cobrir-me com um forro (tomado às pressas do altarzinho a Nossa Senhora), enquanto lá fora, como em um pesadelo cheio de demônios de outro mundo, um bêbado de álcool e ódio surrava a porta, buscando dar o amor que não tinha a alguém que não queria.
Vinte anos após a visita dos anjos, senti outra vez o calor do espírito materno empurrar-me para debaixo da mesa, antes que a lama, surda ao apelo do não, invadisse minha casa por completo. Só então notei no breu a dor dos cegos. Veio-me à mente questões sobre a escuridão, além da consciência de que a existência é finita e a morte a única verdade.
Apesar de ter visto a vida sem máscara em minha infância, tenho-lhe amor. Aprendi com o sofrimento os significados da arte de viver, movendo-me pela linha tênue da existência, com a mesma delicadeza das heroínas das histórias de horror. Atenta aos momentos de fraqueza, fortalecia-me com as reflexões na busca do autoconhecimento, perguntando-me: o quanto quero sofrer com este afeto? Por isso, agora, mesmo cercada pela morte violenta, posso ver algo de belo neste cubículo de vida que me resta, porque tenho tanto carinho pelo sofrimento (presente e atuante como o pai que nunca tive) quanto pela felicidade, uma ilustre visitante.
Dois dias se passaram. Mal conseguia mover as pernas, a lama, fresca e fúnebre, tratou de congelá-las. Encontro-me sentada no chão, com o peito pressionado pelo assento de uma cadeira e a cabeça voltada para a frente. Tudo isso causa-me dores insuportáveis nas cervicais, mas sei que as dores pertencem apenas ao corpo. Livre, a mão direita aperta uma caneta. A cor da tinta já não importa. A mão esquerda, com dois dedos quebrados pela queda, procura na escuridão relevos de linhas e margens no caderninho de receitas. É preciso coragem para contar às mulheres as coisas da cidade morta. Se não as conto, o que saberão? O que foi de mim, o que será delas? A coragem que sinto, então, dá-me a impressão de que a dor é só uma consequência de me sentir entediada.
Tentarei manter a vida e negar a morte no exercício da escrita. Olho para o rosto da morte e a vejo cabisbaixa; deixo-a em paz. Quero antes descrever meu passado para que entendam meu presente, pois tenho a nítida impressão de que a arte do encontro tratará de explicar às Marianas: a que nasceu ontem, a que escreve agora e a que, com sorte, terá uma obra póstuma publicada amanhã, que a escrita é a voz da alma.
A tristeza de deixar de existir dói-me, mas é uma dor que não afeta o Natal. Alegro-me por isso: é a única data em que nós, mulheres, professoras, negras e pobres, esquecemos das humilhações de um ano inteiro. É um curto período de felicidade, e mesmo que dure apenas alguns segundos, como o tempo em que a Estrela de Belém gastou para anunciar a chegada da luz do mundo, vale a pena senti-lo e gozá-lo.
Depois disso, a vida (nua) e o sofrimento (a mim tão caro) continuam: homens vão para a sala de estar, mulheres, para a cozinha. Para eles, somos apenas Marias e Madalenas ou as duas juntas, ou nem uma nem outra. Dói-me imaginar vê-las em posição de continência diante de uma bandeira camuflada ou de um superior que não as supera em nada. Por isso, mesmo que as letras fiquem sobrepostas às letras da dieta milagrosa, anseio deixar o meu relato.
Minha vida foi repleta de sobressaltos, portanto não poderia ter um fim menos trágico, embora comum às Marianas. Uma criança, ao ver a mãe ser violentada e morta pelo próprio pai, descobre, para seu assombro, que a vida é um jardim de horrores. Talvez, pior ainda: ela aprende que para a vida não há saídas, tampouco adianta morrer.
No máximo, e com muita sorte, Marianas, quando crianças, poderão porventura encontrar espaços na vida. Espaços a serem preenchidos: como se preenchem lares para órfãos, escolas de bons costumes ou novas famílias. Mas não se enganem, minhas caras, as Marianas crescerão, virão as adolescentes, esforçadas e cheias de sonhos, a buscar novos espaços a serem preenchidos, porque saídas elas aprenderam (pelo viés das ironias) que não há, e morrer não significa exatamente tornar-se livre.
Depois de tanta luta, eu, adolescente, quase mulher, passei por outra provação: um homem cheio de saídas para a vida, cruzou meu caminho. Ofereceu-me uma bebida, uma saída utópica do jardim dos horrores, rumo ao estonteante jardim das delícias. Eu, criança, despertei-me mulher. Procurei uma saída. Mas quatro homens — de berço e ouro — negaram-me inclusive os espaços: eu, mulher, despertei-me criança. Minha luta, desde então, foi contra a solidão, contra a perda da capacidade do encontro comigo mesma.
— Ei de voltar a crescer! — dizia a mim mesma, tentando-me enganar, porque eu sentia, de algum modo, os espaços comprimirem-me a alma. Eles se fechavam, eles sempre se fecham. Às vezes, para iludir meu sofrimento, estudava, trabalhava e permanecia em silêncio. O quartinho da empregada sempre foi meu cubículo de vida. Quartinho quase invisível, projetado para não ferir os direitos dos patrões nem as paisagens dos grandes projetos arquitetônicos. O projeto é simples: é preciso manter a senzala próxima e a escrava faminta.
Enquanto tento virar a folha do caderninho de receitas, percebo que meus movimentos diminuem o espaço (totalmente sem saídas) deste meu cubículo de morte. A lama tomou-me a parte inferior. De resto, tenho apenas uma bolha de ar e vermes impacientes com a minha teimosia em permanecer viva. A bolha se fecha aos poucos, a vida aparece e desaparece, são flashes de luzes. Ela diz olá e adeus a cada página escrita. Continuo escrevendo, não penso na boa morte, deixo esse pensamento para os vermes. Preocupo-me tão somente com a boa vida. Relaxo-me: ainda tenho uma caneta e um caderninho.
Desistir, jamais! Recorro à arte da granularidade emocional, pergunto-me: o que sinto? E vou esmiuçando os afetos. Nunca tive a pretensão utópica da felicidade eterna: vida sem movimentos cansa-me o espírito. Preciso de altos e baixos: cansar-me de tanto sofrimento e descansar-me na felicidade. Depois, renovada, começo tudo outra vez: fumo um cigarro, tenho um câncer e descanso-me sentadinha na poltrona da quimioterapia. E conservo a consciência de que o verdadeiro mistério não está na morte, porém na vida: o que é a vida… senão provocações?
Dizem que não há encontro possível com a morte: quando a vida está, ela não se encontra, e quando ela chega, é a vida que já não está. Pergunto, então, ao rostinho impaciente que aparece, sempre quando o flash de luz desaparece: “quem é você?” Volta o flash de luz e me diz: olá! Apaga-se a luz, e escuto: adeus!
O Terror das Marianas: Reflexões na Cidade Morta
Formei-me a contragosto dos patrões: meu diploma era igualzinho ao deles, mas minha pele é áspera. E embora seja capaz de suportar violentas cargas de raios ultravioleta, ela é condição de desigualdade. Então, deixo o quartinho da capital e rumo ao interior, onde os homens e suas matemáticas constroem grandes piscinas para dejetos fálicos nas encostas das montanhas. E os vilarejos, como óvulos do mal, são dispostos estrategicamente nos sopés (é preciso manter a senzala próxima).
Leciono Língua Portuguesa, Matemática, História, a Religião dos doze homens e a Moral Militar. Filosofia… não me deixaram: “não estamos aqui para pensar”, disseram os homens com as suas medalhinhas durante a reunião (armada) na sala dos professores. Deste modo sigo: mantenho o sofrimento próximo. Quero antes conhecê-lo a eliminá-lo. Conhecendo-o, creio, posso ter uma vida em que prevaleça, mesmo a conta-gotas, o bem-estar comigo mesma, enquanto espero (desiludida e observando os alunos dispostos em filas como cães do governo) por uma nova revolução cognitiva.
Mas um homem bateu à porta. Não a abri, sei bem o que acontece. Minha mãe não sabia, ela precipitou-se com o galanteio do perdão: “desta vez será diferente”. Ela abriu a porta, argumentou vários nãos e calou-se para sempre. Pensei conhecê-lo: era um homem, um pai, surdo e indiferente ao apelo do não. Quantas mulheres apelam ao não? Impossível saber de porta fechada. Pobres mãezinhas a morrerem sós e caladas. Por isso minha porta continua trancada. Medo? Talvez! Sinto falta de beijos e abraços. Essa sensação de falta também é esmiuçada, e dela surge um afeto regulável. Controlo o açúcar das coisas, o horror ao disfarce machista, e mantenho as presilhas das portas bem azeitadas.
Mas o homem não desiste, ele sobe no telhado, esparrama-se para dentro. Há gatos invisíveis nos telhados, sempre houve, ninguém se importa. E eles continuam e continuarão subindo: decidem o aborto como se fossem eles os violados. Hão de temer algum dia o Novíssimo Testamento, escrito por mulheres em um caderninho de receitas, com a mesma introdução para todos os versículos: “Ai de ti!”
Vigiem-no, ó mulheres! O macho da espécie é o monstro do telhado: a morte violenta abraça-me forte agora. Os flashes de olá já não me visitam mais. Só o rostinho irônico da morte me sorri agora: adeus!
Falta-me o ar, o cubículo cumpre seu ciclo. Escrevo uma ou duas memórias mais no caderninho de receitas, a contragosto da morte impaciente. Respiro com muita dificuldade, a lama vai ficando densa e surda ao apelo do não: o barro invade-me as narinas e a boca, agride-me o tórax e sinto implosões delicadas em meus pulmões. Inspiro o último resquício de ar como minha última alegria em vida, e expiro o resto de toda minha tristeza no momento sensitivo da condenação suprema: do degredo ao meu próprio corpo.
Depois da expatriação forçada, vejo um triste rostinho de luz ao lado do corpo que deixei, além de um caderninho de receitas. Tudo isso foi meu cubículo, um grito solitário que soou, deitou-se e desistiu. Ah! Quem me dera esse grito fosse ecoado por mais uma, duas ou três mulheres (três humanas), e que todas, de seus cubículos, repetissem, a uma só voz, os versículos de uma bíblia inteira:
— Ai de ti, ai de ti…!
Fim (o cubículo se fechou)!
Eber Urzeda dos Santos
O Terror das Marianas
Coleção: Trevas do Eu
Nuremberg – 08/03/2021
“Esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência”.
Leia também a resenha do conto “O Terror das Marianas” e descubra as nuances que me levaram a escrever este conto, e em quem ele foi inspirado!
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FAQ – Dia Internacional da Mulher
1. Qual é a origem do Dia Internacional da Mulher?
O Dia Internacional da Mulher (8 de março) remonta a 1857, quando operárias têxteis de Nova York protestaram contra as precárias condições de trabalho e os baixos salários. Ao longo dos anos, a data se tornou um símbolo da luta por igualdade de gênero e pelos direitos das mulheres em todo o mundo.
2. Qual é o tema do Dia Internacional da Mulher em 2024?
O tema do Dia Internacional da Mulher em 2024 ainda não foi definido pela ONU Mulheres. No entanto, alguns dos temas que podem ser abordados incluem:
• Igualdade de gênero no mercado de trabalho
• Combate à violência contra as mulheres
• Participação das mulheres na política e na tomada de decisões
• Empoderamento econômico das mulheres
3. O que podemos fazer para alcançar a igualdade de gênero?
Para alcançar a igualdade de gênero, é necessário:
• Combater os estereótipos de gênero
• Promover políticas públicas que favoreçam a igualdade de oportunidades
• Educar as novas gerações sobre a importância da igualdade de gênero
• Incentivar a participação das mulheres em todos os âmbitos da sociedade
Recursos adicionais:
- ONU Mulheres: https://www.unwomen.org/
- Dia Internacional da Mulher: https://www.internationalwomensday.com/